quarta-feira, 13 de julho de 2016

O Rebate. José Rentes de Carvalho. «O retrato pendurado na sala mostrava um homem mirrado, de bigode estreito e olhos estranhamente dispostos, diante de quem a mãe se ajoelhava, o santo que nos deixou a pensão, Nosso Senhor o tenha em seu eterno descanso»

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«(…) As mãos voltam aos bolsos rotos, uma comédia, o dinheiro trazia-o numa saca de chita, por baixo do casaco. Tinham-no deixado a tinir e a saca atirou-a ao rio, ou ao comboio, não se lembra, o vinho embaralha-lhe a cabeça, aqueles estouros são do foguetório e a festa com certeza ainda dura, porque é que o Marques se zanga? Vá! Fie o quartilho! Então não ouve? Pelaram-me! Mais dum conto de réis! Caminha aos bordos, arrima-se ao balcão, conciliador, retira o chapéu com uma vénia: então não tenho crédito? E uma terra, e a mula!... A querer agarrar o taberneiro que se afasta, debruça-se, e o chapéu que repusera na cabeça cai do outro lado. Dê-mo! Põe-no na rua, diz a mulher, saindo da cozinha para ver. O Marques deixa o balcão, empurra-o devagar: vai lá. Ficamos amigos? Ainda tenho... E esse ninguém mo tira!... Furioso, a querer desprender-se da mão que o fere: não preciso de fiados, seu bardamer…!  Agarra-se à meia-porta, mas o safanão atira-o contra as faixas de palha, um voo que nunca mais acaba, a mulher acena de longe com um lenço, o chefe acena com a bandeira e o comboio parte, embala-o. A taberneira ia afastar-se, o melhor era não se meter e fazer que não via, mas não pôde: deixa-lo aí? Ele responde sem se voltar: que a coza! Mas o camião?... Que lhe passe por cima. Encara-a, mas já ela entra na cozinha, sorrateira, de olhos baixos, fechando a porta sem barulho. Desde a festa só se falam o preciso, e atrás do balcão, se por acaso a roça, empurra-a com ódio, contém-se para não lhe bater, a fingida! Ai não me toques! Ai que me matas! Ai que me dói!... Tinha-se deitado culpas, que era o vício... Qual vício... Culpa dela, o estafermo... Vinte anos! Se quero mulher tenho de ir à feira! Arrependido até aqui!... Os sardinheiros vão chegando, encharcados, abrigam as burras debaixo do alpendre, empilham as caixas vazias e alguns entram para beber, mal-humorados. Faz-se noite antes de irmos embora! E então? A culpa é minha? Com certeza a chuva estragou a estrada, e o camião, carregado, demora a passar. Ou alguma avaria, porque quando o azar começa... Ó Artur! Senhor? O rapaz leva um dedo ao chapéu ainda com aquele hábito de fazer continências. Pega no cavalo e vai ver. Pois sim. O cão do Zé Grande, aninhado contra as costas do dono, levanta-se e vai até ao portão, pára a farejar o vento, estende o cachaço, os beiços arrepanhados, as orelhas tesas, o primeiro uivo mal se ouve, mas os outros são de arrepiar. O taberneiro grita desabrido ao ver que o rapaz se encosta à ombreira: Vais ou quê? Não é preciso. Já lá vem. O cão esquiva a pedrada e continua a uivar. Ao primeiro estrondo Ana Rosa atirou-se para cima da cama, a travesseira sobre a cabeça, sem dar ouvidos à mãe que matracava a porta: tens medo? Rapariga! Tinha corrido o fecho, esperava ainda antes de responder, aperreando, medo tinha ela e queria companhia. Ana Rosa! Estás aí? - Estou. Ouviu-a suspirar e depois os passos que se afastavam. Certas horas, sem mais razão, os carinhos, e os paparicos punham-na de mau humor, respondia torto, ou então casmurrava e a mãe, que dantes era o tudo, parecia-lhe desprezível, mesquinha, acumulavam-se as zangas por um nada, como de manhã, na rua, quando a mulher tinha dito: bom dia, senhora professora. Julgou que era gracejo e ia explicar que ainda demorava, dois anos, talvez, e era se tudo corresse... Mas a mãe não lhe deu tempo, fê-la andar. Pouco importa. Quero que to chamem. Mas... Deixa lá. Assim é que fica bem e habituam-se. Cansada, encolhia os ombros, lengalenga que entrava por um ouvido e saía por outro, restos de azedume: se nas cidades houvesse tanto respeito como cá, aconteciam menos desgraças! O mal vem quando os pobres começam a dar-se ares, a julgar... Hein? Já o teu pai dizia que na África é o mesmo. Se não andasse à chicotada os pretos comiam-no vivo! E os pobres daqui são como os pretos de lá, tal e qual! Ou pior! Quando a gente não se precata... O retrato pendurado na sala mostrava um homem mirrado, de bigode estreito e olhos estranhamente dispostos, diante de quem a mãe se ajoelhava, o santo que nos deixou a pensão, Nosso Senhor o tenha em seu eterno descanso e ajoelhava também, a temer aquele olhar vesgo. O teu pai disse que havias de estudar para professora, palavras que tantas vezes repetidas tinham adquirido um significado diferente, mas estudava, lutando contra a moleza, levada para diante pelos cem aguilhões que a mãe manejava, sempre a temer falhas, invejas, mau-olhado, como se o defunto ainda comandasse, constantemente a relembrar-lhe cautelas e que agradecesse ao santinho que as protegia. Agarra-te aos estudos! Os estudos! Como é que lhe poderia explicar? E já tens modos! Nunca lhe tinha perguntado a que modos se referia, talvez os modos de senhora, o que as outras pareciam ter de nascença e que as freiras lhe ensinavam, franzindo a boca. Os dezoito anos doíam-lhe e o que a mãe achava perfeito, a corpulência das ancas, as pernas gordas, valia-lhe alcunhas que sofria com lágrimas: qual Ana Rosa? E a outra, fungando de riso: a cu de arroba!» In José Rentes de Carvalho, o Rebate, 1971, Quetzal Editores, 2012, ISBN: 978-989-722-005-0. 
Cortesia de QuetzalE/JDACT