jdact
«(…)
Que, pela sua inteligência, Carlota Joaquina terá sido extraordinariamente precoce,
é demonstrado pelo facto de que, numa idade na qual a generalidade das
crianças, ainda que nascidas em meios privilegiados, jaziam no limbo da
ignorância, por ordem do seu avô ela começou a ser educada por uma das pessoas
mais cultas que naquela altura se podia encontrar na corte, o padre Filipe Scio
San Miguel. Era um sacerdote erudito com um passado muito cosmopolita, nascido
no ambiente privilegiado do Palácio de La Granja de San Ildefonso, antiga residência
da rainha Isabel de Farnésio, e filho de um dinamarquês originário da ilha
grega de Quios (de onde tinha recebido o apelido), que tinha sido professor de
dança de dona Isabel, com cujo séquito tinha vindo de Itália. Filipe Scio tinha
tido, além disso, a honra de ser levado à pia baptismal pelo marido daquela
rainha, Filipe V de Espanha, em pessoa. Aos 14 anos tinha ingressado numa nova
ordem de sacerdotes que mais tarde seriam conhecidos como escolápios, da ordem
das Escolas pias, que aproveitaram a expulsão dos jesuítas para se situarem na
primeira linha no que diz respeito à educação da juventude, se bem que, ao
contrário dos discípulos de santo Inácio de Loyola, esta ordem não só se ocupava
da instrução dos nobres, como também das crianças provenientes das camadas mais
populares.
Depois
de ser ordenado sacerdote, o padre Filipe concluiu os seus estudos na
Universidade de Alcalá de Henares, tendo depois viajado por França e Alemanha,
para de seguida se deter em Roma, onde permaneceu durante sete anos,
aprofundando os seus conhecimentos em filologia, patrística e hermenêutica. Ao
regressar a Espanha, não só sabia perfeitamente latim e grego, como também
hebreu, siríaco e aramaico. Quando se ocupou da educação de Carlota Joaquina,
tinha acabado de publicar um famoso Método de Ensino, descrito como sólido,
fácil e uniforme, e que era uma série de oito princípios ou máximas fundamentais,
nos quais explicava como se deviam comportar os mestres em relação aos alunos
que começavam a estudar as primeiras letras. Uma obra de critério moderno e
inovador, inclusivamente no contexto europeu, e que terá sido um dos motivos,
para além das suas privilegiadas relações cortesãs, que levaram o rei a optar
por lhe confiar a formação intelectual e de carácter da sua neta preferida. Esta
foi uma tarefa de grande prestígio que o padre Scio levaria a cabo ao mesmo
tempo que outra não menos importante, a primeira tradução completa da Bíblia
para castelhano. Uma parte deste trabalho seria realizada em Portugal, quando
acompanhou a infanta para aí prosseguir com a sua educação.
Assim,
uma vez enunciado o importante currículo da pessoa que se ocupou da instrução
de Carlota Joaquina, será adequado fazer uma matização óbvia mas necessária.
Sempre que se aborda a questão da educação dos filhos das famílias reais e se
destaca o valor, regra geral, das pessoas excepcionais encarregadas de o fazer
convém recordar que um excelente professor não significa que os resultados obtidos
pelos seus reais discípulos fossem bons. Em todo o caso, serve para constatar a
importância que conferiam a esse aluno as pessoas encarregadas de organizar os
seus estudos. Com dona Carlota Joaquina, acontece a este respeito algo muito curioso.
Até chegar à adolescência, é aparente que todas as fontes estão de acordo em
destacar que a sua inteligência permitiu que as lições do padre De San Miguel
produzissem uma prodigiosa colheita, pelo que não será excessivo conhecer alguns
aspectos do Método elaborado por este para a educação das crianças em
geral. Deste modo é possível ter-se uma ideia de quais poderiam ter sido os
passos seguidos pela infanta durante a sua formação intelectual. O primeiro
capítulo do Método estava dividido em três partes. A primeira chamava-se Escola
de Soletrar, a segunda Escola de Ler, e a terceira Escola de
Escrever. Depois destas vinham as lições do capítulo chamado breves
elementos da ortografia ou recta escrita espanhola, adaptados à capacidade das
crianças que aprendem a escrever». In Marsilio Cassotti, Carlota Joaquina, O
Pecado Espanhol, tradução de João Boléo, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2009,
ISBN 978-989-626-170-2.
Cortesia
EdosLivros/JDACT