sexta-feira, 29 de julho de 2016

O Êxtase de Gabriel. Sylvain Reynard. «… contemplando preguiçosamente a pele nua e os longos cabelos escuros de Julia. Quando Gabriel retomava a sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu. Preocupado, pôs o jornal de lado»


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Florença. 1290
«Com uma mão trémula, o poeta atirou o bilhete ao chão. Ficou sentado por alguns instantes, imóvel como uma estátua. Depois, cerrando os dentes, pôs-se de pé e correu pela casa em alvoroço. Ignorando mesas e objectos frágeis, desdenhando os outros habitantes da sua casa. Só desejava ver uma pessoa. Caminhou a passo rápido pelas ruas da cidade, e quase começou a correr ao aproximar-se do rio. Deteve-se na extremidade da ponte, a ponte que era sua e dela, e os seus olhos rasos de água percorreram a margem adjacente do rio, procurando o mais ténue vestígio da sua amada. Ela não se encontrava em parte alguma. E não voltaria. A sua amada Beatriz tinha desaparecido.
O professor Gabriel Emerson estava sentado na cama, nu, a ler La Nazione, o jornal florentino. Acordara cedo no Palazzo Vecchio Penthouse do Gallery Hotel Art e pedira que lhe servissem o pequeno-almoço no quarto, mas não resistira a voltar para a cama, para observar Julia, que ainda dormia. Estava deitada de lado, voltada para ele, respirando tranquilamente, um diamante reluzindo-lhe na orelha. Tinha as faces rosadas do calor do quarto, pois o sol que entrava pelas portas envidraçadas incidia sobre a cama. Os lençóis estavam deliciosamente amarrotados, cheirando a sexo e a sândalo. Os olhos de Gabriel brilhavam, contemplando preguiçosamente a pele nua e os longos cabelos escuros de Julia. Quando Gabriel retomava a sua leitura, ela moveu-se ligeiramente e gemeu. Preocupado, pôs o jornal de lado.
Julia encostou os joelhos ao peito, enroscando-se. Murmúrios escaparam-se-lhe por entre os lábios, e Gabriel aproximou-se, tentando, sem êxito, decifrar o que ela dizia. Subitamente, o corpo dela contorceu-se, e Julia soltou um grito cortante, debatendo-se contra o lençol que a envolvia. Julianne? Gabriel pousou-lhe uma mão sobre o ombro nu, mas ela afastou-se. Julia começou a murmurar o nome dele, uma e outra vez, num pânico crescente. Julia, estou aqui, disse Gabriel, falando alto. Quando estendeu de novo a mão para lhe tocar, ela ergueu-se em sobressalto, arquejando. Estás bem? Gabriel aproximou-se, resistindo ao impulso de lhe tocar. Sob o seu olhar cauteloso, Julia continuava ofegante, agitando uma mão diante da cara. Julia? Ao fim de um minuto longo, tenso, ela encarou-o, abrindo muito os olhos. Gabriel franziu o sobrolho. Que aconteceu? Julia engoliu ruidosamente. Tive um pesadelo. Sobre quê? Estava no bosque junto à casa dos teus pais, em Selinsgrove. As sobrancelhas de Gabriel uniram-se por detrás dos seus óculos de aros escuros. Porque havias de sonhar com isso? Julia respirou fundo e cobriu os seios, puxando o lençol até ao queixo. O tecido espesso e branco envolveu toda a sua figura pequena antes de se encapelar, como uma nuvem, sobre o colchão. Fez lembrar a Gabriel uma estátua ateniense.
Fala comigo, Julianne, disse, passando-lhe suavemente os dedos sobre a pele. Ela contorceu-se sob o seu olhar azul penetrante, mas Gabriel insistiu. O sonho começou maravilhosamente. Fizemos amor à luz das estrelas e adormeci nos teus braços. Quando acordei, tinhas desaparecido. Sonhaste que eu fazia amor contigo e depois te abandonava?, perguntou Gabriel, num tom mais frio, tentando mascarar o seu desconforto. Já uma vez acordei sem ti no pomal, censurou-o Julia, calmamente. O fogo que Gabriel sentira no ventre extinguiu-se instantaneamente. Recordou aquela noite mágica, seis anos antes, em que se tinham conhecido, uma noite em que tinham apenas conversado e dormido abraçados. Gabriel acordara, de manhã, e afastara-se, deixando uma adolescente adormecida completamente sozinha. A ansiedade de Julia era compreensível, e até comovente. Gabriel soltou os dedos apertados de Julia, um a um, beijando-os com remorso. Amo-te, Beatriz. Não vou deixar-te. Sabes isso, não sabes? Magoar-me-ia muito mais perder-te agora. De sobrolho franzido, Gabriel rodeou-lhe o ombro com um braço, puxando-a para si e fazendo-a pousar a cara no seu peito. Pensou na noite anterior, e uma miríade de memórias invadiu-lhe a mente. Vira-a nua pela primeira vez e iniciara-a na intimidade do amor. Julia partilhara a sua inocência com ele, e Gabriel julgava tê-la feito feliz. Não havia dúvida de que fora uma das melhores noites da vida dele. Ponderou esse facto por um instante. Arrependes-te do que aconteceu esta noite? Não. Estou feliz por teres sido o meu primeiro. Era o que queria desde que nos conhecemos. Gabriel acariciou-lhe a cara, percorrendo-lhe a face com o polegar. É uma honra ter sido o teu primeiro. Inclinou-se para ela, sem pestanejar. Mas quero ser o último». In Sylvain Reynard, O Êxtase de Gabriel, 2012, Saída de Emergência, 2013, ISBN 978-989-637-504-1.

Cortesia de SEmergência/JDACT