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Aquela luz verde induzia-me sonolências aquosas, diziam outro tanto os olhos
dos assistentes. Eu conhecia o sofrimento deles. Passadas as duas horas,
enquanto nós, estudantes, saíamos em enxame, o professor Di Samis mandava
rebobinar a fita, descia do pódio, sentava-se democraticamente na primeira fila
com os assistentes e, todos em conjunto, tornavam a ouvir as duas horas de
lição, enquanto o professor assentia com satisfação a cada passagem que lhe
parecia essencial. E note-se que o curso era sobre a tradução da Bíblia, no
alemão de Lutero. Uma libidinagem, diziam os meus colegas, com o olhar atónito.
No fim do segundo ano, tendo frequentado pouquíssimo, ousara requerer uma tese
sobre a ironia em Heine (parecia-me consolador o seu tratamento de amores infelizes
com o que me parecia um conveniente cinismo, estava a preparar-me, quanto a amores,
para os meus): vós, jovens, vós, jovens, dissera-me Di Samis desconsolado,
quereis atirar-vos de imediato aos contemporâneos… Compreendera, numa espécie
de iluminação, que a tese com Di Samis estava perdida. Pensara então no professor
Ferio, mais novo, que tinha fama de inteligência brilhante e se dedicava à
época romântica e afins. Mas os colegas mais velhos tinham-me avisado de que,
na tese, apanharia de qualquer maneira Di Samis como segundo arguente, e que não
deveria abordar o professor Ferio de modo oficial porque Di Samis saberia imediatamente
e jurar-me-ia ódio eterno.
Deveria
ir por vias travessas, como se tivesse sido Ferio a pedir-me para fazer a tese
com ele, e assim Di Samis virar-se-ia contra ele e não contra mim. Di Samis
odiava Ferio, pela simples razão de o ter colocado na cátedra. Na universidade
(então, mas acho que ainda hoje) as coisas passam-se ao contrário do mundo
normal, não são os filhos que odeiam os pais, mas os pais que odeiam os filhos.
Pensava que poderia abordar Ferio de modo quase casual, durante uma das
conferências mensais que Di Samis organizava na sua aula magna, frequentadas
por muitos colegas, porque conseguia convidar sempre estudiosos célebres. Mas
as coisas passavam-se assim: imediatamente após a conferência, seguia-se o
debate, que era monopolizado pelos docentes, depois saíam todos, porque o
orador era convidado para o restaurante La Tartaruga, o melhor da zona, estilo
meados de oitocentos, com os empregados ainda de fraque. Para ir do ninho da
águia ao restaurante era necessário percorrer uma grande rua com arcadas, depois
atravessar uma praça histórica, virar a esquina de um palácio monumental e,
finalmente, atravessar uma segunda praceta. Ora, ao longo das arcadas, o orador
avançava rodeado pelos professores catedráticos, seguido a um metro pelos auxiliares,
a dois metros pelos assistentes e, a distância razoável, pelos estudantes mais
corajosos. Chegados à praça histórica, os estudantes afastavam-se, na esquina do
edifício monumental despediam-se os assistentes, os auxiliares atravessavam a praceta
mas cumprimentavam à porta do restaurante, onde entravam apenas o convidado e os
catedráticos.
Assim,
o professor Ferio nunca soube da minha existência. Entretanto, eu perdera o amor
aquele meio, deixara de o frequentar. Traduzia como um autómato, mas temos que
aceitar o que nos dão, e passava para o dolce
stil novo uma obra em três volumes sobre o papel de Friedrich List na criação
do Zollverein, a União Aduaneira Alemã.
Compreende-se porque tinha então deixado de traduzir do alemão, mas era já tarde
para voltar à universidade. O problema é que não aceitas a ideia: continuas a viver
convencido de que um dia ou outro vais acabar todos os exames e farás a tese. E,
quando se vive a cultivar esperanças impossíveis, já se é um perdedor- Quando depois
te apercebes disso, então deixas-te ir. Num primeiro momento, tinha encontrado
trabalho como tutor de um rapaz alemão, demasiado estúpido para ir à escola, em
Engadina. Excelente clima, solidão aceitável, e resisti um ano porque a remuneração
era boa. Depois, a mãe do rapaz chegou-se-me bem perto, um dia, num corredor,
dando-me a entender que não lhe desagradaria conceder-se (a mim). Tinha dentes salientes
e uma sombra de bigode, e eu dei-lhe gentilmente a entender que não estava de
acordo. Três dias depois, fui despedido, porque o rapaz não fazia progressos». In
Umberto Eco, Número Zero, 2015, tradução de José Vaz Carvalho, Gradiva
Publicações, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-616-643-4.
Cortesia
de Gradiva/JDACT