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Voltaram a embarcar e Maria José ficava todos os dias no seu camarote até à
hora de jantar, depois voltava a fechar-se, saindo só com a aragem fresca da
noite para dar uma volta pelo convés, apoiando-se no braço do marido. A morgada
da Casa do Arco levava uma carga particular, que lhe dilatava a pele e afastava
os ossos da bacia. Numa tarde em que os ventos sopravam a favor e a nave deslizava
suavemente num mar que parecia de azeite, como se todos se tivessem afastado
por respeito ao milagre da vida e não quisessem incomodar a parturiente, Maria
José, acudida pelas suas duas criadas e uma ama oferecida pelo governador de
Cabo Verde, deu à luz um menino a quem puseram o nome de Manuel. Nascido perto
da costa brasileira, foi provavelmente por isso que esse mesmo mar se julgou com
o direito de o reclamar quando já era um homem.
Um dos
meus tios, a quem a minha mãe chamava o saudoso irmão, nasceu no alto mar. No mesmo
oceano em que morreu quando a corte se mudou para o Brasil. Fez-me pensar na altura
que, afinal, o mar sempre tinha um monstro devorador que se alimentava de jovens
bonitos, como naquela lenda grega que te contei há muito tempo. A lenda do Minotauro?
Essa mesmo, herdaste a boa memória do teu bisavô que, quando tinha a tua idade,
quinze anos, deixava todos boquiabertos com a capacidade para fixar tudo o que ouvia.
Mas ia dizer-te que a avó Eugénia não guardou boas recordações da travessia por
lhe parecer demasiado longa. Provavelmente, essa foi a razão pela qual o nascimento
do meu tio Manuel foi recebido com mais alegria do que era habitual, porque os distraía
olhar para ele, seguindo os movimentos dos bracinhos e os seus sorrisos de
anjo. A sua chegada ocorreu quase no fim da viagem, e o capitão, consciente de que
as crianças não encontravam com que se entreter, tinha a simpatia de as avisar sempre
que algumas espécies raras acompanhavam o barco. Parece que se debruçavam na proa
e, com o vento na cara, viam os peixes voadores e os golfinhos saltarem junto à
quilha como se fosse uma escolta marinha.
As
ondas embalavam o recém-nascido e, nas raras vezes em que o mar ficava
encapelado, os sustos e os enjoos de Maria José e dos filhos quebravam um pouco
a monotonia de uma viagem que parecia nunca mais chegar ao fim. Rodrigo ocupava
o tempo em longas conversas com o capitão e as outras pessoas que tinham o privilégio
de se sentar à sua mesa e, entre as refeições, sonhava com a vida que os esperava,
com um país do qual não conseguia medir a imensidão e com um pitoresco tropical
que, por mais que se esforçasse, não lograva imaginar. Quando os ventos assim o
quiseram, puderam desembarcar no Brasil, mas ainda lhes faltava a travessia por
terra, que fizeram de carroção, e os solavancos eram ainda mais desagradáveis do
que o movimento oscilante do barco, e só ao cair da tarde encontraram uma choça
onde puderam pernoitar. Maria José ficou muito contrariada porque nunca tinha dormido
debaixo de um telheiro de palha, aberto de todos os lados, mas acabou por descer
e ordenar às crianças que fizessem o mesmo. Rodrigo, entretanto, fazia de conta
que não ouvia as suas reclamações, estratagema usado por inúmeros maridos na mesma
situação, e pedia aos tropeiros que armassem as redes depressa, assim a mulher e
os filhos adormeciam e não protestavam mais. Depois de instalar suas senhorias,
os homens descarregaram as mulas e soltaram-nas, para que pastassem nas redondezas,
e deitaram-se na terra encostados aos fardos para descansarem melhor.
Outras
surpresas lhes reservava o caminho, entre elas animais estranhos que
observavam, curiosos, o passar da caravana; rios com cascatas que pareciam
gravuras de livro; ataques de mosquitos; chuvas torrenciais e, talvez o pior,
porque Maria José nunca tinha visto nada igual, uma família de índios em pelo, que
se atreviam a sorrir-lhes e a dar-lhes as boas-vindas, como se a terra que pisavam
lhes pertencesse. Foi tal o fascínio que a nudez provocou na morgada que esta não
conseguiu desviar os olhos e se esqueceu de dizer aos filhos que fechassem os
deles. Finalmente viram aparecer, por entre a vegetação luxuriante, Vila Rica de
Albuquerque. Graças ao ouro que abundava nas minas, encontraram um lugar que lhes
lembrava os do reino: ruas calcetadas, jardins com fontes, algumas casas com
janelas de guilhotina e vidros pequenos, mesmo se a maioria só tinha umas ripas
de madeira entrelaçadas para deixar passar a luz, parecendo ser esse o género
preferido pelos brasileiros num clima que exigia arejamento. O Palácio do
Governador estava pronto para os receber e, ao entrar nele, todos imaginaram antecipadamente
o prazer de dormir em camas verdadeiras e em terra firme. Mas os corpos não se desabituaram
numa noite à oscilação do barco e do carroção e todos sentiram o estranho efeito
de que tudo era de uma imobilidade singular. Na manhã seguinte, ao pôr-se de pé,
não houve um sequer que não sentisse o chão a fugir-lhe debaixo das solas dos sapatos.
As pernas demoravam a habituar-se à quietude da terra e, titubeantes,
procuravam o equilíbrio incerto a que se tinham acostumado nos meses passados no
mar». In Cristina Norton, O Segredo
da Bastarda, 2002, Oficina do Livro, 2012, ISBN 978-989-23-1047-3.
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