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Poisou a escova no pequeno armário ou apenas na borda do lavatório onde a água
se aquieta, baça. Olha-se e parece não reparar no ruído da porta que dá para o
quarto; é no entanto um ruído demasiado agudo para que não o tenha ouvido; todavia,
na cara pálida, inexpressiva, nada se modifica, somente o corpo parece ter um
pequeno movimento de fuga ao aproximar-se mais do lavatório, quase roçando o
frio húmido da pedra. Os cabelos lisos, soltos, são agora nos dedos dele muito
mais exactos. Nos ombros os seus cabelos e os dedos dele, nos ombros a
arrastarem crispados de pressa os rolos finos das alças para os braços. Os
braços caídos, moles, e os olhos fixos na escova azul a afundar-se devagar, sem
ruído, na água tépida do lavatório.
O
banho
Mergulha
o corpo, deixa-o escorregar até aos ombros na água morna. Tem os cabelos presos
numa espécie de touca amarelo-escura, da cor do robe turco pendurado nas costas
da cadeira de ferro sobre a qual a toalha se encontra. Mergulha o corpo, de uma
palidez doentia, que vai tomando a coloração rosada, só levemente rosada, que a
temperatura da água lhe empresta. Move as pernas, os braços, escorrega ainda um
pouco mais e assenta finalmente a nuca na borda redonda, curva, da banheira
branca, leitosa, incrustada no mármore amarelo-torrado. O vapor que se agarra
às paredes, embacia os espelhos, que adere aos frascos de sais, frascos grandes
de vidro grosso, e à enorme taça dos sabonetes, parece enevoar-lhe os olhos,
adensando-se lhe nas pupilas. Quase líquido. (O silêncio tem um limite no seu
respirar e no movimento da água a deslizar-lhe no corpo.) As mãos assentes perto
do púbis adquirem uma imobilidade modelada na carne. Vê o robe sobre o qual a
cor dos seus cabelos tombará pesada, a luz filtrada pelas persianas, vê o
tecto, apenas o pedaço do tecto perto da janela a formar o ângulo para o início
da parede, a parede suada pelo vapor da água; a janela, vê a janela enorme, os
cortinados: não os cortinados, mas antes uma espécie de persiana interna,
solta, da cor dos azulejos, dos armários, excepto da cadeira de ferro
trabalhado, azul, do lavatório azul, e dos frascos: cor-de-rosa e verdes, num
vidro grosso, liso, alguns rugosos, negros ou brancos, também amarelos, e a
enorme taça azul onde as cores brilhantes dos sabonetes se submetem umas às
outras a ponto de não se poder dizer uma. Vê a pele distendida do corpo: o
corpo. Dir-se-ia antes uma estátua jacente. A imobilidade quebrada apenas pelas
pálpebras que descem agora a encobrir o olhar: velado. Nada lhe interessa, nem
apenas o suficiente para que um músculo se lhe mova no rosto. Será assim? E ela
bem sabe, ou somente pressente o erro. Por isso mesmo e porque não encontra a
maneira de sair daquele vício, afunda-se nele sem remédio. Nada mais lhe
interessa para além da barreira ostensiva do isolamento que constrói, que
diariamente constrói contra eles. Os dedos percorrem o corpo, ao de leve,
dissolvendo o sabonete rosado na água já leitosa. Estende o braço para o deixar
cair perto da taça, a escorregar no amarelo-escuro dos azulejos. De pé no
tapete branco, veste o roupão sobre o corpo molhado e, arrancando a touca,
sente tombarem pesados os cabelos, num movimento livre, espontâneo. Quieta,
demora ainda no corpo e dentro de si a frescura tépida que lhe escorre na pele.
A
resolução
A
resolução, propôs a si própria enquanto arrastava os brincos verdes na palma da
mão direita, parecendo esquecida que tinha de sair, sentindo-o bem mais do que
o sabendo a esperá-la, decerto já impaciente, pronto, ansioso por conduzi-la
uma vez ainda através de todas aquelas salas repletas de gente, enquanto a
adivinhava distante, mole, sob a pressão dura, habitual dos seus dedos,
enquanto lhe adivinhava os olhos velados. Indiferente, o sorriso parado,
estático: e passava os brincos compridos, flexíveis, da palma fria de uma mão
para a outra, imaginando-o perante a recusa, a completa recusa de o seguir,
porém demorando cada vez mais os movimentos. O fato branco estendido sobre o
cadeirão, o fato branco decotado nas costas; demorando cada vez mais os
movimentos, adiando minuto a minuto a resolução a que se propunha, conhecendo
de antemão ao que se iria expôr, mas sem coragem, ou antes, sem vontade de o
impedir, lassa, indiferente, tudo como se lhe fosse indiferente, porém a
náusea, o vómito cravado na garganta mal lhe sinta os dedos a empurrarem-na por
entre toda aquela gente, fazendo-a parar ou demorar-se, exausta: detinha-se
estonteada, conseguindo finalmente arrancar o braço dormente de sob a pressão
firme dos seus dedos, o fato branco direito no corpo, solto nas ancas e no
ventre, o fato branco agora sobre o cadeirão e ainda por estrear, como sempre
um fato por estrear e ela a demorar-se na resolução já distante, já adiada, os
brincos de esmeraldas a tocarem-lhe os ombros nus, todavia neste momento apenas
flexíveis entre as palmas macias das suas mãos. Mas prende-os já nos lóbulos
pequenos das orelhas, o fato solto nas ancas, sobre o ventre; e lívida, de uma
palidez a marcar mais, se possível, o branco do vestido, dirige-se hirta pelo
corredor». In Maria Teresa Horta, Ambas as Mãos sobre o Corpo, 1970, Publicações
Europa América, Colecção Século XX, 1984, ISBN 978-972-100-090-2.