segunda-feira, 4 de julho de 2016

O Anel. Jorge Molist. «… uma dessas curiosidades às quais não se dá importância, mas que continuam a zumbir baixinho nalgum recanto da mente e que, subitamente, um dia se transformam numa total incógnita. Por que é que nunca voltámos à cidade onde nasci?»

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«(…) E senti mais curiosidade. E medo. Algo me dizia que aquele inesperado presente não tinha chegado por acaso, que era um desafio do destino, uma vida paralela à que eu vivia e que, como uma porta secreta, se revelava de repente, abrindo-se à minha passagem e tentando-me a passar a ombreira escura... Tinha a intuição de que aquele anel iria convulsionar essa vida confortável, previsível, cheia de promessas de felicidade que começava agora a viver. Era uma ameaça, uma tentação. Maldito anel! Tinha acabado de chegar e não me deixava dormir, naquela que eu supunha que deveria ser uma noite feliz. Voltei a acender a luz e dei toda a minha atenção à pedra vermelha; tinha um fullgor estranho, interior, e formava uma estrela de seis pontas que parecia mover-se sob a superfície, à medida que eu girava o anel, por forma a que o seu brilho de luzeiro estivesse sempre diante dos meus olhos. Examinei a sua parte interior. Tinha uma incrustação de marfim na base, talhada de maneira a formar um desenho vazio no reverso do rubi, fazendo com que a luz, ao trespassar o cristal, projectasse por trás aquela bela cruz vermelha de sangue. Bem, tinha conseguido compreender como funcionava fisicamente aquela pequena maravilha, mas a minha curiosidade em saber de onde vinha e por que motivo ma tinham enviado aumentava por momentos. De imediato, os meus olhos abriram-se de espanto quando aquele pensamento estalou na minha mente: o anel! O do rubi vermelho. Eu já o tinha visto!
Era como uma imagem que regressava das brumas das recordações de infância; tive a convicção, a certeza absoluta. Era capaz de o ver nalgum lugar do meu passado. Brilhava na mão de alguém. Revirei-me na cama, inquieta. Aconteceu quando eu era criança, em Barcelona. Disso não tenho dúvidas. Mas quem o usava? Esforcei-me, mas não era capaz de me lembrar. Já tinha a certeza de que provinha da minha infância, e talvez de um passado mais remoto, mas quem mo enviava? Por que motivo? Quando alguém quer oferecer alguma coisa a outra pessoa pelo seu aniversário não faz tanto mistério, dá-se a conhecer. Não é verdade? Foi então que, mais uma vez, me ocorreu essa pergunta que sempre quis fazer à minha mãe, mas nunca cheguei a formular em voz alta. Era um pequeno enigma, uma dessas curiosidades às quais não se dá importância, mas que continuam a zumbir baixinho nalgum recanto da mente e que, subitamente, um dia se transformam numa total incógnita. Por que é que nunca voltámos à cidade onde nasci?
Mudámo-nos de Barcelona para Nova Iorque quando eu tinha treze anos. O meu pai é de Michigan e foi, durante muitos anos, responsável pela subsidirária espanhola de uma empresa americana. A minha mãe é filha única de uma boa família da antiga burguesia catalã. Os meus avós paternos morreram e todos os meus parentes em Espanha são afastados; não nos damos. Foi em Barcelona que os meus pais se conheceram, sentiram o impulso atractivo, casaram-se e nasceu esta que agora narra. Toda a vida o meu pai falou comigo em inglês e eu trato-o por Daddy, que quer dizer papá, e ele trata María del Mar, a minha mãe, por Mary. Pois bem, sempre tive intenção de perguntar a Mary por que razão nunca mais voltámos, mas ela evitava o tema. Terá algum motivo?, perguntava-me eu.
Daddy integrou-se muito bem no grupo de amigos da minha mãe, adora Espanha, mas parece que era ela quem insistia em vimos viver para os Estados Unidos. E acabou por levar a melhor; deram ao meu pai um cargo na sede empresarial em Long Island, Nova Iorque. E nós mudámo-nos. María del Mar deixou a sua família, os seus amigos, a sua cidade e partiu contente para a América. Nunca mais regressámos, nem de visita. Que estranho, não é? Dei uma volta na cama e olhei de novo para o despertador. Era já madrugada de domingo e, nesse dia, íamos visitar os meus pais na sua casa de Long Island para festejar o meu aniversário. Pensei que a minha mãe e eu tínhamos muito que falar. Se ela quisesse, claro». In Jorge Molist, O Anel, Ésquilo, Lisboa, 2004, ISBN 972-860-543-9.

Cortesia de Ésquilo/JDACT