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«A
noite septentrional caíra cedo sobre Estocolmo e isso queria dizer que o Outono
agonizava e o escuro Inverno estava prestes a chegar. Para o conde Bertíl
Jacobsson, que ia caminhando vagarosamente pelo Humlegarden já iluminado, sem
quase tocar na relva dura com a sua bengala castanha que tinha uma cabeça de
leão esculpida no punho, era esta a época mais feliz do ano. Bem sabia o que
anunciava aquela noite prematuramente fria: dentro de breves dias o vento
começaria a soprar, o lago Malaren cobrir-se-ia de nevoeiro e, mais tarde,
chegariam a neve e o gelo. Passaria então a dispor de uma boa desculpa para,
encerrado no seu pequeno e confortável apartamento, hibernar entre as
recordações de meio século, enquanto ia trabalhando nas suas notas de carácter
enciclopédico. Depois de sair do parque, o conde Bertil Jacobsson chegou por fim
ao passeio de Sturegatan. Terminara a votação da tarde e em breve
realizar-se-ia o importante acto dessa noite, corolário de dez meses de
trabalho exaustivo. Voltou-se durante um instante, para contemplar solenemente
o parque. Aos olhos de qualquer outra pessoa, aquilo que ainda havia pouco se
mostrava verde e luxuriante poderia parecer agora árido e nu, com as árvores
despojadas de folhas e grotescamente recortadas na luz artificial, como
símbolos do fim da vida numa tela surrealista. Porém, a visão pessoal de
Jacobsson, graças a uma magia muito particular, transformava a cena numa evocação
do renascer da vida, uma natividade em que a Natureza ressuscitava e o ano
velho dava à luz o novo. Chegara outra vez a sua estação favorita, dizia ele consigo
e aquela noite seria memorável. Voltando-se de novo para a rua, o conde Bertil
Jacobsson olhou maquinalmente à direita e à esquerda, a certificar-se de que
não havia movimento de carros, e começou a atravessá-la num passo decidido,
balouçando a bengala com movimentos largos. Ao chegar ao passeio oposto,
encontrou-se mesmo em frente de um estreito edifício de seis andares, o n.º 14
de Sturegatan. Abriu uma das enormes portas de ferro, o que de ano para ano
representava uma proeza física cada vez maior, e entrou no edifício da
Fundação. Como sempre lhe sucedia, experimentou uma sensação de conforto e
segurança ao penetrar na penumbra do corredor que conduzia ao seu gabinete, o
seu lar, o seu museu, o seu mundo. Enquanto caminhava, ia escutando o ruído dos
próprios passos sobre o mármore do chão. Depois parou durante uns momentos,
como era seu costume, diante do gigantesco busto de Alfred Nobel. E de novo se
sentiu hesitante ao contemplar aquele rosto expressivo, vincado e barbudo.
Seria realmente esta a figura que se recordava de ter visto em rapazinho quando
Nobel já era muito velho? Suspirando, voltou por fim para a esquerda, deixou
para trás a tabuleta onde se lia Nobelstiftelsen e, com esforço, subiu a
escadaria de mármore até ao piso que os americanos erradamente designavam por segundo
andar.
Depois
de abrir e fechar uma das portas envidraçadas, Jacobsson encontrou-se no átrio
da recepção, com a sua conhecida carpete verde e as filas de mesas e cadeiras.
Ao atravessar esta sala, observou as prateleiras que lhe cobriam as paredes.
Umas cheias de jornais financeiros, cuja presença ele não se cansava de
reprovar, apesar de dizerem que uma das principais atribuições do Conselho era
a finança, outras, contendo colecções ricamente encadernadas das obras em
espanhol, francês, alemão, inglês, escritas pelos premiados das últimas
décadas. Avistou, por detrás do balcão da sala de entrada, Astrid Steen, a sua
rechonchuda secretária, de pé em frente de um ficheiro aberto. Estava de
costas. Mrs. Steen. Ela voltou-se, rápida e diligente, e ele viu-lhe no rosto o
mesmo ar de excitação que sentia dentro de si. Os telegramas estão
prontos? inquiriu. Sim, pu-los sobre a
sua secretária. Onde estão os outros? Lá em cima. A beber o seu whisky, se me
não engano. Ele riu. Era todos os anos a mesma coisa. Para eles está terminada
a tarefa acrescentou Mrs. Steen. Ainda não... Ainda não... Telefonaram do Ministério dos Estrangeiros.
Vem um adido a caminho. Muito bem. Eu estou no meu gabinete.
E o
conde Bertil Jacobsson entrou no escritório do director executivo, lamentando a
doença do seu superior mas satisfeito no íntimo por ter sido ele a ocupar-se de
tudo, na sua qualidade de director assistente. Atravessou rapidamente o pequeno
gabinete e entrou no seu, mais reduzido ainda, que lhe ficava contíguo. Depois
de despir o sobretudo, de tirar o chapéu de feltro e de colocar com cuidado a
bengala a um canto, Jacobsson piscou alegremente o olho ao seu velho amigo, o
rei Gustavo V, cujo retrato pendia da parede em frente. Viu o grande livro de
folhas dobradas sobre a secretária, pegou nele vivamente e foi sentar-se com
toda a comodidade no sofá azul. A gozar antecipadamente, abriu o livro.
Sentia-se satisfeito porque esse ano, segundo o seu alvitre, e não se recordava
de jamais haver sucedido o mesmo, a Real Academia das Ciências, o Instituto
Caroline, a Academia Sueca e a Comissão Norueguesa do Prémio Nobel, todos
haviam concordado em dar a conhecer ao mesmo tempo ao mundo o nome dos seus
laureados. Isto tornaria a coisa muito mais palpitante, argumentara Jacobsson,
sabendo que o futuro lhe daria razão. Enquanto estudava o conteúdo do livro em
que estava a mexer, a sua expressão tornou-se de súbito carregada. Percorreu
rapidamente com os olhos as folhas escritas à máquina, onde se encontravam reunidos
os telegramas, à procura do que faltava, e depois recordou-se. A Comissão
Norueguesa informara a Fundação Nobel de que, tal como acontecera já dezasseis
vezes, decidira não atribuir o Prémio da Paz, esse ano. Ao lembrar-se desta
sentença que lhe fora comunicada na véspera, abanou a cabeça num silencioso
sinal de aprovação. Na época que se atravessava, podia fazer-se tudo menos dar
palmadinhas em público nas costas dos pacifistas. Amorosamente, sem pressas,
ergueu o rascunho do primeiro telegrama a leu para si. Como reconhecimento
de..., em defesa dos ideais humanitários..., a Fundação Nobel de Estocolmo por
intermédio da Academia Sueca tem o prazer de o informar de que foi hoje escolhido
para o Prémio Nobel... Seguem-se pormenores Stop Cordiais felicitações Stop...»
In
Irving Wallace, O Prémio, 1962, 1973, Livros do Brasil, colecção Dois Mundos,
2001, ISBN 978-972-380-48-3.
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