sexta-feira, 8 de julho de 2016

Olga. Fernando Morais. «Virou a cabeça e viu uma pistola negra apontada contra seu rosto por uma linda moça de cabelos escuros e olhos azuis, que exigiu com voz firme: solte o preso! No auditório, os jovens dividiram-se em dois grupos e se atiraram sobre o secretário Schmidt…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) E, ainda assim, a recriação se deu a partir de depoimentos de testemunhas. Antes de entregar os originais à gráfica, submeti meu trabalho aos olhos de três dos mais brilhantes e impiedosos jornalistas deste país, Luís Weis, Raimundo Rodrigues Pereira e Ricardo Setti, e à mão vigilante de Vladimir Sacchetta, indiscutivelmente uma das maiores autoridades no estudo da memória do movimento operário brasileiro. E, por fim, recebi a ajuda do talentoso Claudio Marcondes, a quem a Editora AlfaOmega atribuíra o trabalho de homogeneizar a grafia de palavras e de fazer a preparação do texto que iria para a composição. Claudio acabou por propor alterações essenciais para a clareza deste livro. Roubei deles preciosas horas de trabalho e lazer, e não me arrependi: a partir de suas críticas, observações e objecções, sentei de novo à máquina para corrigir os erros. Embora a responsabilidade por tudo o que você vai ler agora seja exclusivamente minha, eu devo este livro à colaboração generosa dos entrevistados (cujos nomes vão relacionados ao final). In Fernando Morais, Agosto de 1985

Berlim. Alemanha. Abril de 1928
Tudo aconteceu em menos de um minuto. Pontualmente às nove horas da manhã de 11 de Abril de 1928, o guarda Gunnar Blemke atravessou o salão de audiências revestido de mogno da prisão de Moabit, no centro de Berlim, levando pelo braço, algemado, o professor comunista Otto Braun, de 28 anos. Não que Otto fosse considerado um preso perigoso; as algemas se justificavam por ser um acusado de alta traição à pátria, encarcerado havia um ano e meio, aguardando julgamento. O guarda caminhou com ele em direcção à mesa onde se encontrava o secretário superior de Justiça, Ernst Schmidt, que deveria interrogar Otto Braun. A seu lado, o escrivão Rudolph Nekien lutava para não cochilar sobre a máquina de escrever. Na outra ponta do salão, bem em frente à mesa de Schmidt, um pequeno auditório destinado ao público e aos advogados e isolado por um balaústre de madeira, estava ocupado por meia dúzia de adolescentes, moças e rapazes. Pensei que fossem estudantes de Direito, diria o guarda mais tarde. Blemke estufou o peito diante da autoridade e anunciou: apresentando o preso Otto Braun. Nesse instante ele sentiu algo duro encostado em sua nuca.
Virou a cabeça e viu uma pistola negra apontada contra seu rosto por uma linda moça de cabelos escuros e olhos azuis, que exigiu com voz firme: solte o preso! No auditório, os jovens dividiram-se em dois grupos e se atiraram sobre o secretário Schmidt e o escrivão Nekien, que foi derrubado com violência. Schmidt deu um salto, conseguiu bater a ponta do sapato sobre o botão de alarme instalado no chão, e recebeu uma coronhada no rosto, dada por um garoto enorme, de barba ruiva e cabelo escorrido até quase os ombros. A jovem de olhos azuis que comandava o grupo mantinha a pistola apontada para a cabeça do guarda. Depois de desarmá-lo, caminhou de costas em direcção à porta, cobrindo o preso com seu corpo e gritando para seus companheiros: para a rua! Para a rua! Quem se mexer leva chumbo! O guarda e os dois funcionários foram colocados de cara contra a parede. Com gestos rápidos, a moça mandou que o grupo saísse. O bando já disparava rumo ao portão principal, levando o preso para a calçada, quando seu último grito ecoou na sala: o primeiro a se mover leva chumbo! E sumiu pelo corredor. Ao saltar os degraus da escada na porta da prisão, o grupo se dispersou, cada um fugindo por uma rua diferente. A jovem guardou a pistola na sacola de lã a tiracolo e atravessou correndo o parque Fritz-Schloss para, no outro extremo ao lado de um ginásio de desporto, atirar-se num pequeno furgão verde que a esperava de portas abertas. Ao volante estava um jovem narigudo e atrás, sentado no fundo da carroceria e com as mãos ainda algemadas, estava Otto Braun, encolhido e assustado.
O calhambeque ameaçava desmontar pelas ruas de Berlim. Agora precisavam sair das imediações da prisão, cujas sirenes de alarme podiam ser ouvidas a quarteirões. O carro tomou o rumo sul da cidade. Evitando as ruas mais movimentadas, margeou o pequeno cemitério Blucher e cruzou o canal Schiffarts. Quando entrou no bairro de Neuktilln, a moça, Otto e o narigudo puderam afinal respirar aliviados. Em Neuktilln estavam em casa. Na hora do almoço, uma edição extra do diário Bertiner Zeitung am Mittag já dava detalhes, sob escandalosa manchete, do que chamava de ousada cena de faroeste ocorrida de manhã em Moabit. O jornal anunciava em primeira mão o nome da linda jovem que comandara o assalto comunista : Olga Benario. Ousada cena...
A noite, no pequeno apartamento que a Juventude Comunista conseguira na rua Zieten para escondê-los, ao lado de seu namorado Otto Braun, Olga lia e relia o noticiário dos jornais e parava sempre na mesma expressão. De facto, ousadia era o único substantivo capaz de traduzir não apenas o que havia feito naquela manhã, mas o sentimento que movia a maioria dos adolescentes comunistas do bairro operário de Neukulln. Olhando para a rua através das cortinas do quarto à meia-luz, ela contemplava mais uma manifestação desse estado de espírito. Meia hora antes as tropas da polícia haviam percorrido a região, colando nos postes e muros o enorme cartaz que o promotor superior de Justiça da Alemanha mandara imprimir às pressas, oferecendo a recompensa de 5 mil marcos a quem desse informações sobre o paradeiro do escritor Otto Bran e da dactilógrafa Olga Benario. Agora ela podia ver lá em baixo, na rua, o nanico Gabor Lewin e a agitada Emmy Handke, seus companheiros, arrancando todos os cartazes.
Que outro nome dar, senão ousadia, para o que acontecia a poucas quadras dali, no salão dos fundos da cervejaria Muller? Indiferentes ao cerco que a polícia montara em Neukólln para apanhar os dois, os militantes do Rot Front, a Frente Vermelha da Juventude Comunista, decidiram fazer um acto político para comemorar a libertação de Braun. A primeira a falar foi uma garota de trancinhas. As centenas de pessoas que se aglomeravam no salão, moças, rapazes, velhos operários com suas mulheres e crianças de colo, ela comunicou que todos os envolvidos na libertação de Braun estavam em segurança, e arrancou aplausos demorados quando revelou que a acção fora realizada com armas descarregadas». In Fernando Morais, Olga, 1985, Editora Ómega, 1993/1994, Companhia das Letras, 1985/1999, epub, 2014, ISBN 978-857-164-250-8.

Cortesia de CdasLetras/JDACT