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Vejamos as outras sequências. A relativa autonomia das duas primeiras é menos
evidente do que a do Bispo Negro. Além do que acabamos de dizer acerca da
possível origem do episódio da intervenção de Soeiro Mendes em S. Mamede,
acrescentemos que não se pode ignorar que a época em que Filipe Moreira situa a
redacção da Primeira Crónica, o fim do reinado de Afonso III ou o principio do
de Dinis I, coincide exactamente com aquela em que se avolumam as resistências
aristocráticas ao cerceamento dos privilégios senhoriais, e começam a surgir
textos que exprimem o dever que o rei tem de reconhecer o que deve às linhagens
pela conquista do reino. Assim acontece, por exemplo, no prólogo do Livro Velho
de Linhagens. O seu autor, conta os linhagens dos bons homens filhos d’algo do
reino de Portugal dos que devem a armar e criar e que andaram a la guerra a
filhar o reino de Portugal. Na mesma ordem de ideias, o conde Pedro apesar de
tão próximo do rei, ao apresentar as razões que o levaram a reunir as suas genealogias,
diz, em quinto lugar, por os rreys auerem de conhecer aos uiuos com merçees por
os merecimentos e trabalhos e gramdes lazeiras que rreçeberom os seus auoos em
se guaanhar esta terra de Espanha per elles.
O
tópico haveria de se manter e exprimir durante muito tempo. Continuava a ser
ideologicamente fundamental basear a reivindicação dos direitos senhoriais na
colaboração que as linhagens mais antigas tinham prestado ao rei na conquista
do território aos mouros. Como se sabe, as tensões entre a coroa e a nobreza
senhorial não cessam de crescer até rebentar a guerra civil de 1319-1325. A
conexão destas rivalidades com as anedotas depreciativas para com Afonso
Henriques registadas pelos Livros de Linhagens é fundamental para esclarecer o
aparecimento e a transmissão de narrativas breves mais ou menos isoladas umas
das outras mas de inegável valor ideológico. A comparação deste género
literário com o género cronístico só pode enriquecer o conhecimento dos
fenómenos de criação literária medieval. Não vejo, pois, nenhuma razão para
ignorar ou desprezar as minhas investigações nesse sentido. Com efeito, é
importante ter em conta o ambiente de rivalidade entre o rei e as linhagens mais
importantes para compreender o alcance da criação de uma narrativa cronística
destinada (aceitemos a tese de Filipe Moreira) a exaltar a memória dos reis
antecedentes, sobretudo o primeiro deles. Mas o facto de os materiais usados
nem sempre lhe serem favoráveis torna ainda mais interessante o resultado. Com
efeito, dir-se-ia que o redactor, não podendo, ou não querendo, excluir
tradições contraditórias acerca de Afonso Henriques, acaba por mostrá-lo como
personagem marcado pela ambiguidade. Em primeiro lugar, na narrativa da batalha
de S. Mamede, acentua, como vimos, o decisivo apoio das linhagens e o papel de
adjuvante de Soeiro Mendes (hesita em manter a designação de amo atribuída pela
Crónica de Veinte Reyes a Soeiro Mendes, ausente da IV Crónica Breve e do Livro
de Linhagens, mas acaba por omiti-la. O problema prende-se com a lenda de Egas
Moniz que noutro trabalho considerei como criação do trovador João Soares
Coelho, para esquecer a sua origem de uma linha bastarda e justificar a sua
ascensão na corte de Afonso III. Seja como for, a dualidade dos nomes parece
indicar a existência de versões alternativas num estádio posterior da
transmissão textual. É evidente que a versão original da Primeira Crónica
favorece a família da Maia ou a de Sousa, Soeiro Mendes, e não a de Riba Douro,
Egas Moniz. Mas ficamos sem saber se lhe atribuía ou não a função da criação).
Por mais favorável que queira ser, o cronista não deixa de informar que o
primeiro rei de Portugal precisou do apoio dos nobres para entrar na posse da
herança paterna, e que sairia derrotado se ela não tivesse existido. Mais
ainda, a tentativa de lutar sozinho é qualificada de falta de siso. Aproxime-se
este passo da qualificação de «esquivo» usada pelo cronista para caracterizar o
comportamento inicial do seu herói, ao fazer um certo balanço de todo o reinado.
Em
segundo lugar, é também ambivalente o sentido atribuído ao comportamento de
Afonso Henriques para com sua mãe, apesar de ser esse mesmo comportamento que
constitui o fio condutor da intriga que envolve o primeiro reinado da Primeira
Crónica. O cronista utilizou, sem dúvida, este episódio como elemento de
ligação entre as sequências definidas pelos materiais que reuniu, incluindo a
narrativa sobre o destino trágico do seu herói, mas não nega, antes acentua,
que a derrota em Badajoz se deveu a uma maldição ou um castigo divino. A maldição
funciona de facto como a chave da coerência narrativa. A memória construída
pelo primeiro cronista português não só não apaga por completo visões
divergentes acerca do rei fundador, conforme os meios sociais que a
interpretaram, mas também faz prevalecer como sentido fundamental da vida do
herói o destino marcado pela maldição. Com efeito, à artificialidade formal da
frase com que se liga a história do Bispo Negro à narrativa de S. Mamede, e o
apostolico ouvio dizer…, corresponde a maneira como o cronista introduz o
relato de Badajoz, como um acrescento, depois de uma breve avaliação de todo o
reinado: depois desto pollo mall e pollo pecado que fez a sua madre…» In José
Mattoso, A Primeira Crónica Portuguesa, Revista Medievalista, Ano 5, Número 6,
2009, Instituto de Estudos Medievais, Lisboa, ISSN 1646-740X.
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