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Ali fico. De um lado travado pelos guardas, depois pelo povo que avança do
coração do burgo, hoje com batimento mais forte. Nem os avisos dos arautos,
dias antes, impediram a intensa animação que hoje ameaça estrangular as ruas.
Quarta Feira de Cinzas... Negadas as festas profanas... À medida das enchentes
como água a extravasar dos regos, tangem os sinos redobrados, a ressoar no
caminho manchado de térreas tonalidades, pisado por uma massa humana de
diferentes raças e credos. Volto à rua del Bisbe. Ainda em cima do burro avisto
o movimento sob as arcadas dos paços, destacados das casas térreas arrumadas umas
sobre as outras. Marinheiros, comerciantes do Midi, ricos hombres, caballeros,
hidalgos de todas as partes dos reinos de Aragão e Catalunha, misturam-se com
servos a carregar a bagagem dos amos à procura de hospedagem. Romeiros também
não faltam. Venceram a custo os caminhos desde o Rossilhão até Compostela, e
feita a peregrinação tentam a sorte na cidade, sem ânimo para o regresso. Não
há vão de porta livre, todos servem de acomodação aos mais pobres. Por aqui
passo o tempo, a conduzir o animal rente às paredes negras, desejando a luz de
uma praça para respirar melhor. Meu tio deve andar às voltas por outras vielas
estreitas como riscos, a ver se encontra caminho desimpedido. Rapidez não
trará. Impossível o animal romper ligeiro estas ondas de gente. Depois há de
entender por mais seguro patear com cuidado o chão ainda húmido, onde o sol
jamais conseguirá entrar.
Alcançada
a parede da catedral que deixei há pouco apeio-me, a fazer o varrimento ocular
dos espaços em redor. À minha esquerda, quase ao fundo da rua, um moço de
estrebaria esfrega com vigor o lombo de um cavalo árabe, de pelo negro azeviche.
Há mais dois à espera de vez, cabeças tordilho e baio estendidas sobre as
portadas da cavalariça. Pela adivinhada esbeltez só podem ser pertença de algum
nobre, talvez até do próprio rei Pedro III de Aragão. O moço parece ter pressa
já o dia se abre em toda a plenitude, o sol a derramar reflexos do mais puro
ouro no tom enegrecido dos muros, nos costados do casario, nas torres da
catedral. Onze de Fevereiro, do ano do Senhor de 1282. Não me esqueci dos pormenores
da data, desde a tarde em que Ángel, o emissor da mensagem, fixava os olhos na
orla da floresta, debruçado no adarve do castelo de Monzón. Notava-lhe um
estranho temor pelo futuro dos moradores, desta e de outras fortalezas templárias,
quando lembrava as alianças entre França e Navarra, a vontade de Filipe III em
unificar reinos vizinhos sob a mesma coroa. Para isso o rei dos franceses
queria enfraquecer outros poderes que lhe barravam o caminho, até a poderosa
ordem do Templo. E meu tio diluía as apreensões na esperança de que um
acontecimento próximo, pudesse inverter o curso dos ventos.
Na altura
não entendi que falava do casamento de dona iIsabel com o rei de Portugal, mas
nada lhe perguntei. Habituado a confiar nele, na grande sabedoria que lhe
granjeara respeito aqui e além Pirenéus, comungava apenas do temor e da alegria
que seus olhos transmitiam, e tanto me bastava. Mas sentia que era grave, isso
sentia. E nesse dia prometi-me descobrir que estranhos conflitos interiores o
consumiam. Juan acaba de chegar a este extremo da catedral, sem me dar atenção.
Decepcionado, claro, com a nova barreira de cavaleiros perfilados em linha em
toda a largura da rua. Agita-se em cima da mula, angustiado, com pressa de
passar a mensagem que o traz a Barcelona. Mas como não costuma dar abrigo a
contrariedades, em segundos aninha a viola entre o traje puído de estamenha e o
dorso do animal, para apelar ao jeito cortês de antigo monge. Começa então a
discorrer sobre os nomes sonantes da sua linhagem, para introduzir a urgência da
missão, num discurso profundo de amplos gestos.
Lá
consegue convencer os guardas. Nessa altura aproveito a maré de sorte e monto
também, transformando com ele as últimas braças do percurso no fulgor de um
raio. Já no pátio, Juan puxa com vigor as rédeas da besta, ensaiando meia volta
em frente do rapaz confundido com o galope desabrido. Ainda o animal se agita
para soltar o freio já o cavaleiro, a deitar os bofes pela boca, desfere
perguntas sem a cortesia de uma saudação:
E a
infanta dona Isabel?
Pois
deve estar ainda recolhida, bom homem. Sossegai primeiro vossa mula que parece
cansada de correr.
Quero
ver a aia dela mais velha, antes que saia
E que
posso eu fazer um moço de estrebaria?
Vai
lá dentro, pede para falar com Soledad, diz-lhe que a espero no vão daquela
porta, ao lado da cavalariça
Agora?...
Não sei se conseguirei romper pelo paço dentro
Aqui
tens, oiro do bom
Mas
isto são maravedis dos antigos, uma riqueza…
Vais
ou não vais?
É
para já, bom senhor, se tomardes atenção ao cavalo. E quem devo anunciar?
Diz-lhe
que trago novas urgentes da casa templária de Monzón.
O moço
desaparece pelas escadas do pátio interior, a chocalhar as moedas na mão
fechada. Aproveito para me apear pela segunda vez, atar a corda do burro a uma
pedra, cruzar com destemor o espaço à frente de meu tio, já rente ao cavalo
meio escovado». In Maria Helena Ventura, Onde Vais Isabel, Saída de Emergência, 2008,
ISBN 978-989-637-034-3.
Cortesia
de SdeEmergência/JDACT