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e wikipedia
«Querida
Berit, Muito obrigado por este Verão que passamos juntos: foi fantástico. Pena
que tenha acabado. Amanhã começam as aulas e, como imagina, não estou
propriamente cheio de alegria. Vou encontrar aqueles ranhosos! Bom, mas o que
interessa é que no próximo ano acabo e Nils Boyum vai para o segundo ciclo! Mas
vamos ao que interessa. Pensei muito na ideia do epistolário e tenho que
admitir, apesar de tudo, não é má de todo: escrever cartas neste caderno grosso
que vamos enviando um ao outro, entre Oslo e Fjaerland, vai ser como colar
fotografias num álbum, só que em vez de fotos utilizamos palavras. De repente,
quando formos velhotes caducos (ah, ah) até vamos nos divertir relendo estas
cartas. Se é que vamos ter algo para escrever. Tenho a impressão de que este
Outono vai ser tão excitante como uma fatia de pão sem Nutella. Imagino que também aí, em Fjaerland, não vão acontecer
grandes coisas. A não ser que tenham descoberto um abominável homem das neves
sob a geleira de Jostedal! Bom, agora tenho de acabar. Cumprimentos da minha
mãe. Espero que a tia Greta esteja se dando bem no seu novo trabalho no hotel e
look forward to seeing you again, como costumam dizer nas viagens de avião. O
meu pai também te mandaria um abraço mas está trabalhando na estrada com o táxi
e não sabe que estou te escrevendo. E para acabar um grande abraço do teu
profundamente honrado primo Nils
PS:
Quase me esqueci de te contar um episódio insólito que me aconteceu quando comprei
este caderno. Não o comprei em Oslo, mas em Sogndal, quando regressava de Fjaerland.
Lembra-se daquela mulher estranha? De olhos enormes e com aquele livro todo rasgado
que levava no saco? Estava sentada lendo o livro de visitas do refúgio de
Flatbre e olhava para nós de soslaio enquanto escrevíamos a nossa poesia. A
propósito, ainda se lembra dela? Eu me lembro.
Aqui,
a aproveitar o sol de Verão
bebemos
Coca-colas bem geladas.
Nils
e Berit, nossos nomes são,
e as
férias ainda não estão acabadas.
Aqui
no alto há paz, tranquilidade,
não
queremos voltar à cidade!
A
meu ver tem um certo estilo. Mas não é da poesia que quero te falar. É da tal
mulher! Quando entrei na livraria em Sogndal, ela também estava lá. Vagueava
por entre as estantes observando os livros. E, Berit, se babava toda! Isso
mesmo, não há outra maneira de dizer: aquela mulher vagueava pela livraria
babando como se os livros fossem feitos de chocolate ou de um doce qualquer.
Mas a coisa mais estranha é que, no exacto momento em que eu ia pagar o
caderno, ela se aproximou de mim e perguntou se podia contribuir com uma nota
de mil para o pagamento da minha despesa. Fiquei sem saber o que dizer.
Fixou-me com um olhar tão terrificante que fiquei sem coragem de não aceitar. A
expressão dos olhos é difícil de descrever, porém, senti-me exactamente como se
eu fosse um livro aberto e ela estivesse me lendo. Não pude fazer mais nada
senão aceitar o dinheiro e agradecer. E sabe o que é que ela me respondeu?
Disse: eu é que tenho que agradecer! Depois, puxou um lenço, limpou os cantos
da boca e desapareceu. De qualquer forma, aqui vai o caderno. Envio também uma
das duas chaves. Tome cuidado para não deixá-lo aberto quando não o estiver
usando. Lembre-se que é for your eyes only
(só para os teus olhos). Perdoe-me pela fotografia da capa: só podia escolher
entre o Sognefjord e um pôr do Sol com um coração no lugar do Sol. Qual você
escolheria?
Fim
da carta.
Querido
primo!
Obrigada
pelo epistolário que encontrei na caixa de correio e que acabo de abrir. Infelizmente,
não posso te contar como vão as coisas por estas bandas porque aquilo que aconteceu
hoje à tarde não me deixa pensar em mais nada. Tenho que escrever já, ainda que
esteja com as mãos tremendo. Você consegue ler do mesmo jeito, não é? Trata-se
da mulher misteriosa. A mesma que você encontrou em Sogndal. Ó meu Deus por
onde é que começo?
Eu
estava no cais de embarque quando chegou o barco das duas da tarde. Aqui, de facto,
as aulas só começam na próxima segunda-feira e, por isso, não há muito o que
fazer. E foi então que ela chegou, percebe? De todos os passageiros, ela foi a
primeira a desembarcar. Passou ao meu lado e me deu uma olhada do tipo sei
muito bem quem é você!. Ainda não tinha lido a sua carta, porém, me lembrei
do encontro no refúgio de Flatbre e decidi segui-la, à distância, claro! Nem
sei onde fui buscar tanta coragem. Era como se ela tivesse me hipnotizado e me
obrigasse a segui-la (agora pode ver a minha mão tremendo!). Logo depois da
igreja voltou-se e olhou para trás. Não tive outra escolha senão me atirar para
a beira da estrada e esconder-me na valeta, e isto aconteceu várias vezes ao
longo da estrada que leva até Mundalen. Mas acho que ela não me viu. Está vendo
aquela cancela de madeira que se abre no muro? Pois bem, ela virou ali à direita,
na direcção da casa amarela, que se encontra isolada à beira do bosque. Eu
fiquei de vigia por trás do muro. E, agora, vou directa ao que interessa: no
momento em que ela estava para abrir a porta vi qualquer coisa que,
subitamente, caiu do seu saco. Um segundo depois ela tinha desaparecido.
Estava
tão agitada que não consegui pensar em mais nada. Deve ser assim que se sente quem
comete um crime pela primeira vez. De um momento para o outro, encontrei-me em frente
da casa, mais ou menos como um ladrão mascarado que, de repente, salta para a
varanda e grita: isto é um assalto. Bom, o meu não era bem um assalto de
verdade, não gritei e nem sequer estava mascarada. No entanto, peguei o pequeno
envelope e, sorrateiramente, esgueirei-me, outra vez, para trás do muro. Dentro
do envelope havia uma carta e, na carta, estava escrito:
Querida Lilli,
Vagueei pela cidade a manhã inteira mas
não fui capaz de encontrar aquele extraordinário antiquário. Será que fechou as
portas de um dia para o outro? Só sei que se situava numa das ruelas estreitas
que ficam nas proximidades da Praça Navona. Pelo menos era ali que estava no
dia em que, por acaso, fui parar lá. Andava à procura de uma edição italiana do
Peer Gynt mas, quando o proprietário percebeu que eu era norueguesa, chamou-me
à parte, conduziu-me até uma velha estante e indicou-me um livro com uma capa
diferente de todas as outras, pelo simples facto de que era nova em folha. Não
tenho somente livros que já estão escritos, sussurrou, olhando-me intensamente.
Eu, naturalmente, não entendia o que ele queria dizer. Foi então que tirou um
livro da estante, olhou-me com atenção, como se estivesse me estudando, e
esclareceu; eu também colecciono livros que, mais cedo ou mais tarde, irão ser
escritos. É claro que livros deste tipo são infinitos, porém, só muito
raramente me vem parar um às mãos. Depois, entregou-me o livro. Na capa
figuravam altas montanhas, e o título tinha a ver com uma certa biblioteca
mágica. Mas o problema não era nem a capa nem o título. O problema é que
o livro é publicado em Oslo, no ano de 1993! Publicado no próximo ano,
Lilli! E o velho sublinhou que se tratava de uma edição especial». In Jostein
Gaarder e Klaus Hagerup, A Biblioteca Mágica de Bibbi Bokken, Companhia das
Letras, Seguinte, 2003, ISBN 978-853-590-370-6.
Cortesia
da CdasLetras/Seguinte/JDACT