domingo, 31 de julho de 2016

Camões no 31. Até que o Amor me Mate. Maria Lopo de Carvalho. «Pus o coração nos olhos, e os olhos pus no chão por vingar o coração. Se pouco vos mereci, não me estimais mais que o chão…»

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As Mulheres de Camões
Violante de Andrade. 1543
«Passeava eu de liteira pelas ruas de Coimbra e eis que o vislumbro, galhofando com outros moços escolares. A barba cor de fogo e o estilo peralta e galante prenderam-me a atenção. Marquei-o mas, simulando recato, baixei os olhos. Ainda que, por uso, um mero vislumbre de olhos meus seja flecha no alvo, não cuidava que um desvio de olhar fosse também dar armas de vantagem ao amor. Mas assim foi. Tardou pouco para que os versos do mancebo me chegassem às mãos:

Pus o coração nos olhos,
e os olhos pus no chão
por vingar o coração.
Se pouco vos mereci,
não me estimais mais que o chão,
a quem vós o galardão
dais, a mo negais a mi.

Logo achei ocasião de indagar a Francisco Morais, que lodos os meandros conhece, quem era aquele rapaz de tão desusado colorido. O nosso hábil e douto amigo logo se me pôs a recitar um soneto que o dito moço barbirruivo, de nome Luís Vaz Camões, escrevera aos dez anos de idade, não sem um leve esgar de contrariedade. Seria inveja, admiração ou uma mescla das duas?

Os reinos e os impérios poderosos,
Que em grandeza no mundo mais cresceram,
E por diante, e por diante.

Teve Grácia Temístocles famosos;
os Cipiões a Roma engrandeceram;

E por diante, e por diante. Era, com efeito, admirável! Aos dez anos de idade!

Francisco de Morais, autor d'O Palmeirim de Inglaterra, romance de cavalaria que não me canso de ler, secretário, conselheiro e amigo do senhor meu marido, é homem bom e justo. Pena ser um tanto depreciativo, mas o seu apurado senso de humor compensa em sarcasmo o que perde em despeito. E, nele, a vontade de ser leal ao amo sobrepõe-se a tudo. O meu amigo, que tudo via com reserva e desconfiança, não iria certamente concordar com o meu intento de contratar aquele moço para mestre de Antoninho, o primogénito dos meus três filhos. Sempre que se punha a exibir a pose de homem sábio e de extrema erudição, punha-me eu logo a recitar em voz alta uma passagem do seu Palmeirim, a que descrevia as damas de Paris, só para o ver corar de aflição: aquelas princesas e senhorias (...) jogando ao alho saltando umas por cima das outras. Muitas vezes saltam mal e caem com os focinhos para baixo Não posso dizer tudo senão que o padre para não ver desonestidades remetia-se às moças que caíam, e cobrindo-as com o manto as ajudava a levantar...
Pois ainda que se deleitasse com damas saltando umas por cima das outras, e com o manto do padre que as cobria, dizia e repetia o nosso conselheiro, torcendo o douto focinho, que trazer Luís Vaz de Coimbra para Xabregas como mestre do primogénito da Casa de Linhares sem lhe estudar minuciosamente a genealogia, a cultura e a índole era poderosa afronta: pode ter grande talento, porém só talento não chega. Afinal Vossa Excelência, senhora condessa de Linhares, é detentora do primeiro título criado por El-Rei João III, é filha do tesoureiro-mor da Coroa, sobrinha do capitão de Ceuta, e vosso marido, o senhor conde, embaixador do Reino junto da Corte francesa de Francisco I e dona Leonor de Áustria. Para mestre do morgado António não há-de servir qualquer um, senhora…
Desagradou-me o que ouvi e não descansei enquanto não larguei a Crónica do Imperador Clarimundo, do nosso muito chegado João Barros, para saborear os delicados sonetos e as oitavas que Luís Vaz escrevera à Casa de Bragança. Sus! Que estoiro! Dizem que foi beber ao moderno Petrarca, que o Cancioneiro Geral de Garcia Resende o sabe já de cor e que, ainda assim, lhe não basta, pois que quer aprender com os italianos. Custa-me a crer. Que haja quem queira saber das rimas dos italianos é coisa que me espanta..., até a mim, que me dou amiúde com gente letrada e tenho uma das melhores livrarias do Reino. Só Sá Miranda os segue e imita. E como é que Luís Vaz, que mal passou pelos bancos da universidade, conhece Petrarca? E porém a imitação dos clássicos parece nele encobrir um talento de verdadeiro homem de letras, talento que nele brota como água de fonte levando-nos de enxurrada para um outro mundo.

Vinde a ver a Teodósio grande e claro,
a quem está oferecendo maior canto
na cítara dourada o louro Apolo.

Minerva, do saber, dá-lhe o dom raro,
Palas lhe dá o valor de mais espanto,
e a Fama o leva já de pólo a pólo.

Não se esperava que Teodósio de Bragança lhe agradecesse, pois que para certa nobreza é de bom-tom desprezar os homens comuns de duvidosos costados. Diz-se que também o duque de Aveiro e o marquês de Cascais lhe encomendaram rimas. Fama de homem culto e letrado, que conhece os segredos da mitologia como as estrelas no firmamento, tem-na ele granjeado. Alguns reais vai certamente amealhando, mas nunca o bastante para a vida devassa que dizem levar...» In Maria João Lopo de Carvalho, Oficina do Livro, LeYa, 2016, ISBN -978-989-741-488-6.



Cortesia de Odo Livro/JDACT