terça-feira, 5 de junho de 2012

A Vida de Nun'Alvares. Oliveira Martins. «Já o Hospital era entre nós uma milícia particularmente portuguesa, sujeita á coroa, como as ordens monásticas não militares, embora no espiritual ligada ao grão-mestrado, quando o prior fr. Álvaro Gonçalves foi a Rhodes…»



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Conforme o original

O prior do Hospital
«Outra Palestina foi a Hespanha, avassallada também pelo Islam ; e por isso os exércitos cruzados paravam aqui, nas derrotas das suas viagens do mar do Norte para o Mediterrâneo; por isso as ordens hyerosalemitanas, que tamanho papel tiveram na fundação de Portugal, se enraizaram, engrandecendo-se. Expulsos da Palestina os hospitalários com a conquista da Terra-Santa pelos egypcios (1201), levaram para Chypre o seu tabernáculo; mas também d'ahi foram repellidos, indo estabelecer-se em Rhodes (1310).

NOTA: Os hospitalários ficaram em Rhodes até á conquista da ilha pelos turcos de Solimão, em 1530. Carlos V deu-lhes então a ilha de Malta, d'onde os cavalleiros se ficaram chamando posteriormente,como antes se tinham dito de Rhodes.

N'esta época, porém, a ‘lingoa’ de Portugal soffrera uma revolução profunda, desde que el-rei Diniz I nacionalizara as ordens hyerosalemitanas, colocando-as sob a sua autoridade real, e transferindo para a cavallaria de Christo os bens do Templo, abolido por Clemente V. Já o Hospital era entre nós uma milícia particularmente portugueza, sujeita á coroa, como as ordens monásticas não militares, embora no espiritual ligada ao grão-mestrado, quando o prior fr. Álvaro Gonsalves foi a Rhodes, «muy grandemente e bem acompanhado», tributar o seu preito de vassallagem.
Mas por isso mesmo que a ordem se tornara portugueza, era no concurso das forças politicas da nação um dos elementos preponderantes, não havendo talvez na corte cargo mais invejado, nem de maior valia, do que o priorado do Hospital. Entrando em Portugal em 1119, no tempo de el-rei Affonso Henriques, a ordem recebera d'este rei e dos seus successores a doação de vinte e uma villas e logares.
Os seus domínios concentravam-se no centro do reino, sobre o curso do Tejo e do Zêzere, alongando para o sul um braço, e para o norte outro:
  • o primeiro era Montoito, a igual distancia de Évora e do Guadiana;
  • o segundo eram Lobelhe-do-Matto e Ranhados, entre Vizeu e o Mondego.
Dominando o valle do Zêzere, no curso médio da sua margem direita, possuíam os hospitalários Alvares e a Pampilhosa, fronteiros aos quaes ficavam na margem esquerda os castellos de Oleiros e do Pedrogão-pequeno. A Certan e o Bomjardim, com Proença-a-nova mais para leste, aninhada no alto dos montes que dividem as aguas do Zêzere das do Tejo, continuavam em direcção d'este rio as parelhas de castellos da ordem. Depois vinha o Carvoeiro, numa dobra do pendor austral do terreno; depois Belver, a cavaleiro sobre a margem direita do Tejo, em frente do Gavião ; depois, acima do Gavião e do lado de Villa-Flor, o castello da Amieira, construído pelo prior fr. Álvaro Gonsalves;
depois Tolosa; depois o Crato, com Flôr-da-Rosa, e Elvira e a commenda de Cores, e o logar de Aguilheiro, e o concelho da Margem, e o couto da Coutada, e o casal do Monte, e a villa de Ferrajos, com vinte e quatro comendas. Tal era, pois, a familia em que nasceu Nun'alvares.

A mãe, quando em dezembro de 1372 viu a luz em Coimbra a infanta D. Beatriz, fora feita sua cuvilheira.

NOTA: Na casa da infanta eram aias D. Theresa de Meira, mulher do alcaide-mór de Portel, e Violante Affonso, viuva de Diogo Gomes de Abreu. Camareira-mór, era Maria Affonso, mulher de Vasco Martins de Melo. Cuvilheira, era a amante do prior do Hospital, cujas relações continuaram.
Outros querem que Iria Gonsalves fosse filha de Álvaro Gil do Carvalhal, dos senhores de Evora-monte.

Andava, pois, na corte d'el-rei Fernando, onde o exemplo dado pelo soberano, que tirara Leonor Telles a seu marido, sanccionava a licença dos costumes do tempo. Andava na corte, e lá continuou a ficar: nem o prior hospedava nos mosteiros da ordem as successivas mães dos seus trinta e dois bastardos. Filha do alcaide-mór de Almada, Pedro Gonsalves do Carvalhal, que tinha também na corte um filho, Martim Gonsalves, não era nenhuma creatura humilde, sem ser, porém, dama de alta gerarchia.
Em 1373, na época a que nos estamos referindo, contava Nun'alvares treze annos, com a virilidade precoce. Os homens formavam-se muito mais breve n'esses tempos agrestes, de uma barbárie alliada, porém, aos requintes e contradicções inherentes ao periodo de civilisação confusa a que se chama Edade-média. Chocavam-se os elementos de creação espontânea, de violência pristina e barbara, próprios de povos que emergiam do captiveiro musulmano ao som da guerra, por entre os escombros da civilisação antiga, derruida por completo na Hespanha á mão dos árabes: chocavam-se com as tradições, com as ruinas, com os restos dispersos e pervertidos d'essa Antiguidade, que parecia ás imaginações ter acabado afogada no sangue de Christo. A egreja era o vehiculo da tradição clássica, e também por isso mesmo, a auctoridade suprema, como representante, na terra, do poder de um Deus temido. Os ministros da religião dominavam as almas por um processo de auto-intimidação, semelhante ao dos feiticeiros primitivos; e se a barbarisação do pensamento e do saber frequentemente rebaixava os dogmas theologicos e os cânones rituaes até ao nivel da feiticeria simples: a violência dos costumes levava os sacerdotes a envergar também a armadura e a empunhar a espada, apparecendo soldados n'uma sociedade essencialmente guerreira». In Oliveira Martins, A Vida de Nun'Alvares, História do estabelecimento da dinastia de Avis, Livraria de António Maria Pereira, Editor, 1893.

     
Cortesia de Makew Parr Collection/Magellan and the Age of Discovery/Presented to Brandies University, 1961/JDACT