quarta-feira, 6 de junho de 2012

Os Teatros de Lisboa: Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. «Charlatão de talento, charlatão com merecimento, mas charlatão. Ares de ‘Falstaf’, com um quê de ‘Prud’homme’, outro quê de ‘Don Quixote’, e um quê também de ‘Roberto Macário’. Porque era um ‘macassar’! No reclame, na fama, no brilho, na suavidade, no oleoso, na importância…»



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De acordo com o original

São Carlos
«Entretanto o mais original, o mais pantafassudamente original de quantos artistas teem pisado aquelle palco glorioso, foi decerto il cavaliére de Beneventano! Il barone Beneventano! Um galant’uommo, como se diz em Itália.
Affabilissimo, delicadíssimo, suavíssimo, cantando como ninguém a musica rossiniana, ‘il mio bravo interprete Beneventano! dizia delle Rossini, correctíssimo, affectadissimo, e paspalhissimo!
Beneventano era um ‘gentleman’ emproado, mas era um ‘gentleman’.

Cantando, era um artista.
Andando, era um nababo.
Conversando, era um paladino.
Gesticulando, era um acrobata.
Vestindo, era uma caricatura.
E...
Vestindo, gesticulando, conversando, andando, cantando, era sempre um charlatão.

Charlatão de talento, charlatão com merecimento, mas charlatão. Ares de Falstaf, com um quê de Prud’homme, outro quê de Don Quixote, e um quê também de Roberto Macário. Só um chimico poderia bem examinar de que singulares segredos se compunha aquelle ‘macassar’.
Porque era um ‘macassar’! No reclame, na fama, no brilho, na suavidade, no oleoso, na importância…
«Ó sublime macassar!» diz Byron no ‘D. João’. A guarda roupa d'este ‘dio del canto’ era assombrosa. Tinha setenta casacos, e vinte e dois paletós. Só em colletes novos, renovava o painel das onze mil virgens!
O nosso conhecimento fez-se de um modo curioso. Eu escrevera muitas vezes a seu respeito dando-lhe o louvor de que era digno, mas sem a foguetada de elogios a que os artistas vivem habituados na imprensa. Os meus folhetins, e n'esse tempo eu estava só em campo, e a ‘Revolução de Setembro’ era o único jornal que tinha revista critica da semana, cahiram-lhe em graça, e constava-me, ora por um ora por outro, que o divino Beneventano me fazia as melhores ausências.
De uma occasião, intendeu talvez que isso não era bastante, e recorreu a um expediente curioso. Em nos encontrando no Passeio Publico, eu sosinho ou com algum amigo, elle com sua mulher, uma ingleza enxertada em italiana, baixinha, branca, brilhante, e em numerosa companhia ás vezes de artistas ou de ‘diletanti’, que se recreavam em fazer com elle a ‘passeggiata’; em nos encontrando, já elle dizia para o seu rancho, indicando-me bizarramente á sua illustre comitiva:
  •  - Il nostro sympathico!
Eu fazia-me corado, ficava sem saber se devia tirar o chapéu a agradecer, e ia seguindo o meu caminho n'uma vaidosa perturbação. D’alli a dois dias, viamo-nos outra vez, e, sem comprimento, sem paragem, sem mais tir’te nem guard’te, Beneventano deixava cair magestaticamente de seus sublimes lábios estas palavras, meu enlevo e minha gloria:
  •  - Il nostro sympathico!
Eu tinha vinte annos; e, quando elle me disparava esta amabilidade á queima-roupa, deitava umas olhadelas á mulher, que era lindissima, em que se me iam os vinte annos todos. No dia de um folhetim a propósito da ‘Semiramis’, o plumoso… não, o encasacado cantor, foi a minha casa. Grande conversação, grandes ‘shake-hands’, e brava, e ‘mille grazzie’, e ‘tanto gentile’; ficámos com uma amisade de pedra e cal.
N’uma tarde húmida d'esse inverno, estando em sua casa e querendo vir para a minha, oppôz-se elle galhardamente…» In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.


 
Cortesia de Livraria Ed. Mattos Moreira/Bordalo Pinheiro/JDACT