sexta-feira, 15 de junho de 2012

Inquisição de Évora. Dos Primórdios a 1668. António Borges Coelho. «Ao longo desta caminhada, os factos e os números não vieram sós. Mas, como querem as regras, é possível sistematizar agora conclusões maiores, precisamente em torno da sociedade da Inquisição (maldita) de Évora e das suas vítimas»



jdact

Santo Ofício e subdesenvolvimento
«O coração das vilas era a praça ou rossio: rossio-feira, rossio-mercado, rossio-festa, rossio-assembleia, rossio-união e motim, rossio-procissão, rossio-mastro, rossio-touros, rossio-carnaval e máscaras, rossio-poço rossio-pelourinho, rossio-cadeia e casa da câmara, rossios da via-sacra e dos actos da fé.
Dominando a praça, a mole de pedra da igreja matriz com –os santos olhando dos altares, o canto ecoando nas. paredes pintadas e os mortos sob as lousas de mármore, ou no adro, cristãos-novos muitas vezes separados dos cristãos-velhos. A torre sineira com o seu novo relógio marcava as horas e as tarefas do dia. E avisava: o Senhor está fora; há fogo. E se chorava os defuntos, também atroava os montes com os gritos da festa ou alvoroçava e apelava com o estridor do rebate.
Casas ricas, muitas delas de sobrado, ou casas brancas de poial, banco e chaminé ladeavam o rossio. Das varandas e janelas penduravam-se as colchas coloridas da festa, choviam flores e alcandoravam-se como em camarote donas e donzelas para ver os touros, as festas do cavalo, as comédias, as máscaras, as chacotas, as procissões diurnas e nocturnas com os flagelantes e esponjas de vinho para enraivecer as feridas. Fora da respiração larga do rossio, o dédalo das ruas, ruelas e becos. Uma das ruas Direita, quase sempre torta mas talvez Directa.
A muralha com as suas torres, portas e postigos travava as construções de pedra e adobe marcadas com o verde das árvores nos quintais e açoteias. Aqui e ali as casas pinchavam para fora das muralhas criando arrabaldes, por vezes ricos, com a Rua dos Mercadores, a Rua da Videira e a Rua do Meio, como acontecia em Avis.

NOTA: Estes nomes que constam da “Descripção Geográphica, Histórica da Vila e Real Ordem de Avis” de Francisco Xavier do Rego mantiveram-se até aos nossos dias. E se objectarem que a “Descripção” data de 1730, acrescentarei que já em 1556 se mencionava a Rua dos Mercadores (“Direìtos Bens e Propriedades da Ordem e Mestrado de Avis...”, Lisboa, 1950/3).

Intramuros, em praça ou rua própria, ficava a Misericórdia com a sua igreja, as suas roupas negras de capuz, as suas tochas e no coro os bancos honrados de espaldar dos irmãos da Mesa. Estes administravam a vida e a morte no hospital, socorriam presos, órfãos, pobres, viúvas e defuntos.
A vila ou cidade contava com o celeiro: celeiro real em Serpa, celeiro da vila em Monforte, celeiros de particulares com livros onde se registavam os fundos dos depositantes. O celeiro não era apenas o armazém onde se guardavam os grãos. Implicava a organização dos proprietários que administravam os depósitos de cereais, providenciavam das sementes e emprestavam cereal e dinheiro, o Celeiro Comum.
O pão, vida dos pobres, transformava-se no Corpo de Deus. Benziam, beijavam, comiam, rilhavam as côdeas do pão cozido, apanhavam, beijavam, devoravam as migalhas. Luís de la Penha atravessava-o com uma faca e um prego:
- Eu te esconjuro, pão, com Barrabás e Satanás e com Lucifer e com Caifás!
Depois, as mãos abertas sobre o trigo: - Pão! Pela virtude que Deus em ti pôs que me declares se há-de dar. Anda e dá uma volta. Não me mintas porque o hei-de saber. Pão! Pula ousa! Pão! Pula ousa!
Havia os pelomes ou alcaçarias onde se tratavam os couros: alcaçarias de Domingos Fernandes Teixeira em Moura, alcaçarias da Misericórdia em Serpa, alcaçarias de Monsaraz e Avis fora das muralhas da vila, horta dos Pelomes em Portalegre, a qual era de Pêro Gonçalves, o ‘Periquito’, rendeiro das sisas e trapeiro que foi curtidor (ANTT, Inquisição de Évora, Processo nº 6376)». In António Borges Coelho, Inquisição de Évora, dos Primórdios a 1668, Editorial Caminho, Colecção Universitária, Lisboa, 1987.

Cortesia Caminho/JDACT