quarta-feira, 27 de junho de 2012

A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho. Carolina Michaelis de Vasconcelos. « Depois do falecimento de Sancho I, a Ribeirinha foi raptada, mas casou com outro adorador, é preciso sabê-lo para compreender a última quadra»



jdact e costapinheiro

«Escuso de notar, pois já houve quem notasse, a deliciosa cadência rítmica desses versos de amigo, "tão musical que a gente julga estar vendo a garbosa flexura do corpo de D. Maria Paes Ribeiro, acompanhando-se na cítara quando ensaiava, na presença do rei, a... comédia das saudades".
“Comédia?” nesse caso, porventura! Drama íntimo provavelmente em outro primor de lirismo ancestral, em que um coevo de Sancho I, parente e adorador da mesma inspiradora Ribeirinha, e na minha opinião, o mais velho dos trovadores portugueses de que possuímos versos “autênticos” exala a sua própria mágoa, seu pesar, seu lento morrer de amor, sua saudade cuidosa:

Como morreu quen nnuca ben
ouve da ren que mais amou,
e quen viu quanto receou
dela, e foi morto por ên:
‘Ai mia senhor, assi moir’eu!’
Como morreu quen foi amar
quen lhe nunca quis ben fazer,
e de quen lhe fez Deus veer
de que foi morto con pesar:
‘Ai mia senhor, assi moir'eu!’

Com' ome que ensandeceu,
senhor, con gran pesar que viu,
e non foi ledo nen dormiu
depois, mia senhor, e morreu:
‘Ai mia senhor, assi moir'eu!’
Como morreu quen amou tal
dona que lhe nunca fez ben,
e quen a viu levar a quen
a non valia, nen a val:
‘Ai mia senhor, assi moir'eu!’

Depois do falecimento de Sancho I, a Ribeirinha foi raptada, mas casou com outro adorador, é preciso sabê-lo para compreender a última quadra.
Verdade é que nesses tempos arcaicos, os trovadores ainda não conglobavam sempre clara e definitivamente os sentimentos todos que hoje constituem a saudade nesse mesmo e só nesse vocábulo.
A formas primitivas “so-e-dade so-i-dade su-i-dade” ainda não se haviam cristalizado na mais melodiosa de “saudade”.
Mais melodiosa, e também mais expressiva e repleta, por ter havido fusão inconsciente com a ideia da “sa(l)udade” ou “salvação” e redenção da alma. Ainda se referiam essencialmente ao estado de “solidão” e abandono do que está triste.
Mas as qualidades ternas, suaves, submissas, resignadas da paixão portuguesa, já lá estão, com certeza. “Lá” quer dizer: nos dois exemplos que aleguei, e em dúzias de exemplos paralelos.
Alguns trovadores já tinham chegado mesmo a ligar a “soidade”, o significado de ’sensação de “soidão” ou “solidão” e de abandono que inspiram o amor e a ausência’. Nostalgia portanto». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, A Saudade Portuguesa. Divagações filológicas e Literar-Históricas em volta de Inês de Castro e do Cantar Velho, “Saudade minha – quanto te veria?”, Colecção Filosofia & Ensaios, Guimarães Editores, Lisboa, 1996, ISBN 972-665-397-5.

Cortesia de Guimarães Editores/JDACT