domingo, 10 de junho de 2012

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XVII. Ceuta. «Fostes tomadas em vão de mim, sem fundamento; e vós éreis todas de vento e eu delle vivia então. Se vos tomei sem razão. Com ella vos deixarei. Tão mal como vos tomei»



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«Foram também escritas nesta fase as seguintes redondilhas, tão repassadas de resignada melancolia:

Mote
Esperanças mal tomadas,
Agora vos deixarei.
Tão mal como vos tomei.

Voltas
Fostes tomadas em vão
De mim, sem fundamento;
E vós éreis todas de vento
E eu delle vivia então.
Se vos tomei sem razão.
Com ella vos deixarei.
Tão mal como vos tomei.
Assim vos queria ter,
Sem razão e mal tomadas,
Sabendo, quando deixadas.
Quanto havieis de doer.
Mas nem isto pode ser,
Que por meu mal vos tomei,
E por vós me deixarei.

Quereis que faça mudança?
De vós outro bem não entendo.
Isto só se ganha em vos vendo,
Isto só de vós se alcança.
Mas esta vã esperança,
Senhora, se eu a tomei
Por vós, como a deixarei?

Mote
Ó meus altos pensamentos,
Quão altos que vos pusestes
E quão grande queda destes!

Voltas
Como de mim vos não vinha
Serdes firmes num estado
(Pois o viver enganado
Era o maior bem que tinha),
Castello d'esta alma minha,
Quão alto que vos pusestes
E quão grande queda destes!

Sabia que éreis de vento,
Como quem vos viu fazer;
Inda assim vos queria ter,
Como éreis sem fundamento.
Quem vos desfez num momento?
Ai! Quão alto vos pusestes
E quão grande queda destes!

Quantas lágrimas, porém, não derramou o enamorado poeta, antes de chegar a este estado de espírito! Quantas vezes se não lembrou de morrer, enquanto não arrancou do coração o “seu alto pensamento!”
Lêem-se, entre outras, as poesias que se seguem.

Já a roxa Manhã clara
As portas do oriente vinha abrindo,
Dos montes descobrindo
A negra escuridão, da luz avara.
O Sol, que nunca pára,
Da sua alegre vista saudoso,
Trás ella pressuroso,
Nos cavallos cansados do trabalho,
Que respiram nas hervas fresco orvalho,
Se estende claro, alegre e luminoso.
Os pássaros, voando.
De raminho em raminho vão saltando,
E com suave e doce melodia
O claro dia estão manifestando.

A Manhã bella, amena,
Seu rosto descobrindo, a espessura
^Se cobre de verdura,
Clara, suave, angélica, serena.
Oh deleitosa pena!
Oh effeito de amor, alto e potente!
Pois permitte e consente
Que, ou onde quer que eu ande ou donde esteja,
O seraphico gesto sempre veja,
Por quem de viver triste sou contente.
Mas tu. Aurora pura,
De tanto bem dá graças á ventura.
Pois as foi pôr em ti tão excellentes,
Que representas tanta formosura.

A luz, suave e leda,
A meus olhos me mostra por quem mouro,
Com os cabellos de ouro.
Que nenhum ouro iguala, se os remeda.
Esta a luz é que arreda
A negra escuridão do sentimento
Ao doce pensamento.
Os orvalhos das flores delicadas
São, nos meus olhos, lagrimas cansadas,
Que eu choro co prazer de meu tormento.
Os pássaros que cantam,
Meus espíritos são, que a voz levantam,
Manifestando o gesto peregrino
Com tão divino som, que o mundo espantam.

Assi como acontece
A quem a cara vida está perdendo
Que, emquanto vai morrendo,
Alguma visão santa lhe apparece:
A mim, em quem fallece
A vida, que sois vós, minha Senhora,
A esta alma, que em vós mora,
Emquanto da prisão se está apartando,
Vos estais justamente apresentando
Em forma de formosa e roxa Aurora.
Oh ditosa partida!
Oh gloria soberana, alta e subida,
Se ma não impedir o meu desejo!
Porque o que vejo, emfim me torna a vida.

Porém a natureza,
Que nesta pura vista se mantinha,
Me falta tão asinha,
Como o Sol sahe sobre a redondeza.
Se houverdes que é fraqueza
Morrer em tão penoso e triste estado,
Amor será culpado
Ou vós, onde elle vive tão isento,
Que causastes tão largo apartamento,
Porque perdesse a vida co cuidado.
Que, se viver não posso,
Homem formado só de carne e osso,
Esta vida que perco. Amor ma deu,
Que não sou meu: se morro, o damno é vosso.
Canção de cysne, feita em hora extrema,
Na dura pedra fria
Da memoria te deixo, em companhia
Do letreiro da minha sepultura.
Que a sombra escura já me impede o dia.
(Canção 3.ª).

Se, para desoprimir o seu triste coração, o poeta subia às vezes

... ao monte que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividiu,

quantas vezes não procuraria sítios recônditos, para aí se desfazer em lágrimas ardentes! (149)». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/ JDACT