sábado, 23 de junho de 2012

Camões e a Infanta D. Maria: Parte XVII. Ceuta. «Posto me tem Fortuna em tal estado, e tanto a seus pés me tem rendido! Não tenho que perder, já de perdido, nem tenho que mudar, já de mudado! Todo bem para mi é acabado; d’aqui dou o viver já por vivido; que aonde o mal é tão conhecido, também o viver mais será 'scusado»



jdact

Se, para desoprimir o seu triste coração, o poeta subia às vezes
... ao monte que Hercules Thebano
Do altissimo Calpe dividiu,

quantas vezes não procuraria sítios recônditos, para aí se desfazer em lágrimas ardentes!

Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Emfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque alli, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente?

Que, pois a minha pena é sem medida,
Alli não serei triste em dias ledos
E dias tristes me farão contente.
(Soneto 181).

E, depois dessas crises de lágrimas, escrevia o poeta:

Pois meus olhos não cansam de chorar
Tristezas, não cansadas de cansar-me,
Pois não se abranda o fogo, em que abrasar-me
Pôde quem eu jamais pude abrandar:

Não canse o cego Amor de me guiar
Onde nunca de lá possa tornar-me,
Nem deixe o mundo todo de escutar-me,
Emquanto a fraca voz me não deixar.

E se em montes, se em prados, e se em vales
Piedade mora alguma, algum amor
Em feras, plantas, aves, pedras, aguas,

Ouçam a longa historia de meus males
E curem sua dôr com minha dôr;
Que grandes maguas podem curar maguas.
(Soneto 67)

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
Se mais ha de perder quem mais alcança.

Mas dou-vos esta firme segurança:
Que, posto que me mate o meu tormento,
Por as aguas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem;
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A gloria que em soffrer tal pena sentem.
(Soneto 22)

Suspiros inflammados, que cantais
A tristeza com que vivi tão ledo,
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Letheio vos percais.

Escriptos para sempre já ficais,
Onde vos mostrarão todos co dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),

Dizei-lhe que os servistes muitos annos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não ha senão enganos.
(Soneto 73).

Como não era de apetecer a morte, para quem tanto sofria, para quem não via outra maneira de sair do ‘abismo infernal do seu tormento’.

Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder, já de perdido,
Nem tenho que mudar, já de mudado!

Todo bem para mi é acabado;
D’aqui dou o viver já por vivido;
Que aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será 'scusado.

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém,
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em qu’rer remédio tal.
(Soneto 284)

Mas a morte, a não ser por um acto condenável, nem sempre está ás nossas ordens. Que fazer então? Desistir do alto pensamento, ou continuar a sofrer por causa dele?
Vejamos a luta que se travou na alma do amargurado poeta (152)». In José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910, PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/.

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/JDACT