segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Os religiosos pululam nos mercados, litigam nos tribunais, compram, vendem, levantam, deitam abaixo, fazem dum quadrado uma roda, convocam homens de leis, trazem testemunhas e estão dispostos a fazer juras por uma coisa que não vale nada»



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A Sátira na Pregação do século XIII
Sermões de Santo António
«Também os leigos percorrem o mesmo caminho amaldiçoado. Avarentos e usurários, não passam de feras que assaltam e devoram. Adoram o bezerro do ouro e andam pela estrada da morte. São eles que se apoderam de tudo no mundo, empobrecem as igrejas e desnudam os mosteiros. Malditos sejam, pois digerem os bens dos pobres, dos órfãos e das viúvas, e deixam à fome os monges e cónegos regrantes. Se dão esmolas, está nelas o sangue dos pobres. Contudo, o avarento é pobre. Não possui, é possuído. Não é mal ter dinheiro. O mal está em servi-lo. Ai, a quantos religiosos cegou a avareza, a quantos claustrais ela enfatuou, a quantos seculares ela mandou para o Inferno!
Hoje em dia, reza-se. Porém, tal oração anda muitas vezes adulterada com a «goma do dinheiro». E com o dinheiro, nasce a soberba. Ambicionam cargos e esquecem-se de que pouca foi a sua educação. Em termos do século XX, são eles os novos-ricos, os arrivistas de sempre, que da vida antiga trazem o que é mau e deixam o que é bom. E o pregador continua:
  • «Quantos suportariam a pobreza, se depois lhes dessem a Espanha ou a França! Mas, por amor do reino dos Céus, nada fazem!»
Os religiosos pululam nos mercados, litigam nos tribunais, compram, vendem, levantam, deitam abaixo, fazem dum quadrado uma roda, convocam homens de leis, trazem testemunhas e estão dispostos a fazer juras por uma coisa que não vale nada. Dizei-me, religiosos, vistes essas demandas nos profetas ou nos evangelhos? Clérigos e bispos ligam mais às decretais dos papas do que aos evangelhos. E se alguém comete um pecado mortal em público, ninguém o corrige, ninguém o acusa.
A omnipotência do dinheiro marcou toda a sátira da Idade Média, no púlpito, nos goliardos ou nos trovadores. Dom Dinheiro mandava no mundo e uma poesia de expansão europeia, De Nummo, chegou ao mosteiro de Alcobaça e foi adaptada, em Castela, pelo génio do Arcipreste de Hita, no Libro de Buen Amor.
A Igreja não é só o clero. Abrange também o povo. Ora, todos espremem os fracos e tiram dele o último ceitil. O manto de púrpura, de que fala a Bíblia, simboliza os bens dos pobres, ganhos «com muito suor e sangue». Vêm, depois, os soldados e os usurários das cidades (burgenses) e tiram-lhes o que têm e que tanto sabe a sangue. Chamam-lhes vilões, «mas eles é que são diabos vilões». E o clero, ai de quem não lhe dá! Excomungam-no!
Lembramo-nos dos versos de Gil Vicente, na Barca do Purgatório, quando o camponês diz que «bradão co’elle / porque assoviou a hum cam / e logo a escomunham na pelle». Erasmo não entra aqui para coisa nenhuma. Era uma torrente que vinha de longe e troava nos púlpitos da Idade Média.
Bispos, abades e priores andam atrás da vanglória, como ursos à volta dum cortiço, para lhe chupar o mel. O auditório, pensamos nós, havia de rir-se com esta comparação, como se ria das sátiras de Gil Vicente, o maior herdeiro da nossa Idade Média. Sátira para rir, nos sermões de Santo António? Não bem isso. Uma espécie de amor e de humor furioso.
Monges e frades, esses homens abstinentes comem a carne dos seus irmãos, dilaceram-na com os dentes da maledicência. Enfim, a sátira abrange todas as classes, entram nela todos os vícios, faz rir, faz sorrir e faz doer, sobretudo ao falar do sangue dos pobres.
Num sermão, Santo António utiliza a fábula da raposa, do lobo e da lua no poço. Há religiosos, diz ele, que imitam o lobo e caem no poço da ambição dos bens deste mundo, julgando que são eternos. E têm a sorte do lobo. Era um conto engraçado e devia correr de boca em boca, mais desenvolvido, já se vê, mil vezes repetido e mil vezes escutado atentamente». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, Pdf, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT