quinta-feira, 21 de junho de 2012

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «O mal deixa de parecer belo e a sensualidade une-se à crueldade, consoante uma das constantes da História. Por isso, ao pregar sobre S. Dionísio Areopagita, compara as feras às meretrizes e proxenetas da Babilónia deste mundo»



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Frei Paio de Coimbra
«Temos de apresentar este pregador, embora de leve. Dele fala Gerardo de Frachet, já no século XIII, ao compilar as Vitae Fratrum, e daí tirou Frei Luís de Sousa as suas informações. Outras, porém, descobrimos nos sermões, em letra de 1250 e ainda inéditos, do cód. alcobacence n.º 5, agora na Biblioteca Nacional de Lisboa. Dos caminhos europeus percorridos por este português do século XIII e dos sermões que nos deixou, pode o leitor ver num trabalhoso estudo, publicado em 1973: O Sermonário de Frei Paio de Coimbra do Cód. Alc. 5 / 17 CXXX 17. São mais de quatrocentos esquemas, cuja imagética já analisámos ao longo de trinta e tal páginas.
Ora, nestes panegíricos distribuídos pelas festas do ciclo litúrgico, fala-nos ele dos homens do seu tempo. E a sátira achou ali o seu campo de manobra, embora mais restrito do que em Santo António. É que Frei Paio falava também de moral e até as vidas dalguns santos encerravam passagens irónicas, como esta frase de S. Lourenço, na grelha: «O assado está pronto dum lado. Vira-me para o outro lado e come!»
Num sermão de S. Lucas, fala-nos Frei Paio das quadrigas do diabo: Há a quadriga da Malícia, com quatro rodas, crueldade, impaciência, atrevimento e imprudência. Temos a quadriga da Luxúria, a rodar sobre a glutonaria, o ardor do coito, as vestes efeminadas e o relaxamento da preguiça, quadriga essa puxada por dois corcéis: vida próspera e abundância de tudo. Dois são os cocheiros: o torpor da moleza, com o véu da dissimulação, e a segurança temerária, com o flabelo da adulação. Segue-se a quadriga da Avareza e as suas quatro rodas: timidez, desumanidade, desprezo de Deus e esquecimento da morte. Os cavalos são a cupidez e a teimosia, ambos a arder na febre de ter. É o diabo quem vai nestas quadrigas.
O mal deixa de parecer belo e a sensualidade une-se à crueldade, consoante uma das constantes da História. Por isso, ao pregar sobre S. Dionísio Areopagita, compara as feras às meretrizes e proxenetas da Babilónia deste mundo. E feras são também os maledicentes, os homens ladravazes, os comilões insaciáveis e os hereges. A Dama das Camélias não tem lugar nestes sermões.

Na feira do mundo, cada um entesoura o que entende. Os avarentos, dinheiro. Nas encruzilhadas, mostram-se os hipócritas e vaidosos, mas em breve lhes roubarão a sua gloríola. Os glutões ficam na esterqueira e ali deixam o que antes comeram. Só os esmoleres «todos os dias levam os seus bens para o Céu, nas mãos dos pobres».
E chegamos ao grande paradoxo:
  • não se perde o que se dá!
A sátira social volta aos lábios de Frei Paio. São estas as mesas do diabo: a mesa da fraude, a mesa da rapina, a mesa da usura e a mesa das velhas proxenetas ou alcoviteiras. Delas se alimenta o pecado. Boa descrição, a dos males da inveja e seus reflexos na fisionomia do homem! Ela fez cair Lúcifer do Céu, levou-o a tentar Adão e Eva, convenceu Caim a matar Abel e vendeu José do Egipto. Atormenta os sentidos, incendeia o coração, enfraquece-o e, à maneira da peste, devora-o com raiva. No seu rosto, há secura; na boca, ranger de dentes. A inveja transforma em suplício os bens alheios, mirra-se toda e transforma-nos em membros do diabo. Por ela, entrou a morte no mundo e foi ela que pôs a Cristo na cruz.
Os pregadores tiveram isto de bom, ao longo de quase dois mil anos: impuseram a tabela dos valores espirituais e, mesmo quando satirizavam, era por amor. Os bobos, na corte, e eles, no púlpito, enfrentavam os problemas individuais e comunitários, detectavam a lepra das almas e falavam alto, sem ninguém lhes ir à mão. Duros? Por vezes. Não, porém, sempre. Nas desarmonias conjugais, Frei Paio fala docemente e aconselha o homem a deixar os modos ásperos e a tratar a mulher carinhosamente.
«És marido e não dono. Não te coube em sorte uma escrava mas, sim, uma esposa. Deu-te Deus a governar o sexo inferior, não a tiranizá-lo. Dá lugar à dedicação, abre-te ao amor». Contudo, aproveita a morte de S. João Baptista para atacar as cantilenas eróticas, as dançarinas e os jograis. Fala-nos mesmo da «eficiência duma dançarina» e afirma:
  • «Onde se dança, aí está o diabo».
Deus fez-nos as pernas para outra coisa, não para bailar ao som de cantares de amor. Não dizia mal das mulheres boas. Sabia que podemos lutar contra os vícios todos. Não, porém, com uma mulher. Tinha a consciência da força enorme do sexo fraco e «inferior». Alegria? Sim, mas espiritual, não a dos jograis, que até profanam as festas do casamento». In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT