domingo, 24 de junho de 2012

A Teologia de Leonardo Coimbra. Pinharanda Gomes. «Não há um sem dois, nem dois sem três. Um sem dois é nada, dois sem três é o deserto. Três é comunidade viva, e nenhum se quer só. Outro junto ao um é companhia, mas não comunidade, porque só no terceiro se revela a essência de dois seres…»


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Os Sinais da ‘Renascença Portuguesa’
O Dom da Vida
«O verbo categórico de regresso é “gradior”, em português a usar na forma inusada ‘gredir’, mas que só somos capazes de utilizar de modo críptico em palavras compostas: ‘agredir, progredir, regredir’, como se nos fosse possível fazer composição sem todos os elementos da compostura. Ou talvez nos seja mais simpático esconder, sob um prefixo, mesmo que vivo, a essência da fórmula que alquimizamos. Em que, tudo junto e ordenado, é de livro primário saber que atacar a ideia de ‘regresso’ significa atacar a ideia de ‘progresso’. O pêndulo da mecânica não é o pêndulo do relógio. É o pêndulo homem em seu vaivém, na nomenclatura política cifrado em passo adiante e passo atrás, o que já supõe, na ciência política, um empobrecimento daquilo que, na sapiência religiosa, se designa com uma única palavra, aliás composta, mas significando isso mesmo, ingresso em progresso com regresso: ‘a-rre-pendimento’. O verbo que dá origem ao substantivo é ‘reflexo’, e como tal se deve conjugar sempre (‘arrepender-se’) não havendo propriamente o verbo arrepender, sem ‘-se’. Lança raízes em ‘re-pendo’, verbo que manda pesar de novo, retribuir com peso igual, verbo esse análogo ao adjectivo ‘repens’, origem de ‘repentino’: retribuir de repente, arrepender-se, tão breve como no afluxo e no impulso biótico do arco da vida.
A tensão existencial, o progresso e o regresso, o fazer e o refazer, o morrer e o ressuscitar, o nascer e o renascer. ‘Re-‘ é nada em si mesmo. Ligado a substância ou a movimento, é qual poldra no meio do vau da ribeira; por ela se saltita, atingindo a terra desejada, sem molhar os pés.

Parir e Nascer
A equação de Almada Negreiros 1+1=1 é uma teoria cristológica, afirma, o dogma monofisita, pelo qual, nem o Pai nem o Filho são dois em um, sem deixarem de ser dois, nem o Pai e o Filho dão processão ao Espírito, de forma que são três como se fossem um, sem deixarem de ser três. Monofisismo ainda, enquanto a equação afirma que a unidade divina não admite parimento, pelo que Deus nunca poderá encarnar em homem,
porque tem uma natureza imutável, sempre possessa do uno, sem hipótese de vir ao multo. A aclamação litúrgica “unus panis, unum corpus, multi sumus”, não tem lugar na aritmosofia de Almada. '
Não há um sem dois, nem dois sem três. Um sem dois é nada, dois sem três é o deserto. Três é comunidade viva, e nenhum se quer só. Outro junto ao um é companhia, mas não comunidade, porque só no terceiro se revela a essência de dois seres como um, pelo amor. E o amor é parinte, e o amor quer ver nascer, quer parir: um mais um igual a três, como se, em heterodoxa imagem, disséssemos que o Espírito é filho do Pai e do Filho, ainda que nem Pai nem Filho como uns, pudessem ser sem Espírito. Nascer, realização do acto do amor, como na génese criacional do primeiro instante, génese amassada entre águas e barros, como o homem que nasce entre urinas e fezes. Nascer é o efeito de parir. Aí mesmo temos o ‘redamo’: receber e dar. O homem dá o que recebe, a sua humanidade. É, assim, menos complexo entender o mistério da Incarnação; a divindade vem do Pai, mas a humanidade vem de Maria, mãe, “mater”, “myriam”, em que “y” é um sinal, como chama, descido da região celeste.
A simbologia do nascer é dada ao conhecimento imaginativo através das gloriosas imagens sacras. A sociedade dispõe de escolas onde, durante as respectivas aulas, e na frente de um mapa do corpo humano, os aprendizes do amor, sedentos de amor, recebem a iniciação na mecânica sexual, tal como são instruídos em contabilidade. Na mecânica sexual, chamada escolarmente educação, sexual, não há inteligência para entender a dignidade do amor». In Pinharanda Gomes, A Teologia de Leonardo Coimbra, Guimarães Editores, Colecção Filosofia e Ensaios, Lisboa, 1985,

Pintura de Eduardo Malta
 Cortesia de Guimarães Edt./JDACT