segunda-feira, 25 de junho de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «… apareceu uma grande fotografia dessa mulher, num papel grosso e baço, de cor sépia, que apanhava o rosto e parte do busto, com os ombros ainda destapados, numa pose provocante, embora os lábios fechados não dessem a ver mais do que uma sensualidade reprimida…»


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«Nunca houve um túnel que ligasse as duas casas, passando por baixo da rua. Não tinha havido, mas o mito fez com que passasse a haver na memória do povo, que dá realidade mesmo às coisas que não existem. Era por ele que a dona da Retrosaria passava, à tarde, para se ir encontrar com o Senhor. Não se pode saber, agora que tanta conversa passou, o que se teria dado nesses encontros, embora seja de crer que tivessem consumado o amor, e que isso tivesse provocado a ira do Anarquista que, segundo a voz corrente, amava a dona da Retrosaria; mas outros diziam que o Anarquista não demonstrava vocação especial para o sexo, o que era visível pela sua atitude curvada sobre a página de anúncios do jornal, ensimesmado na contemplação das letras, o que acabou por fazer dele o intelectual da aldeia, capaz de ter uma opinião sobre tudo o que se passava no mundo. Isso explica, de resto, a existência daquelas reuniões de fim de tarde, em que ele era o centro da estranha Loja de homens do comércio, que para ali traziam os seus problemas e, enquanto bebiam aguardente, punham a vida da aldeia e do mundo em dia.
O mito, por outro lado, metamorfoseou a dona da Retrosaria numa figura quase de cinema, como uma dessas vedetas de um filme de capa e espada, embora mais baixa do que elas,  mas nunca se consegue saber o verdadeiro tamanho das vedetas de cinema porque há sempre maneira, para um bom cineasta, de transformar uma mulher baixa numa beldade de proporções nórdicas. Não teriam ficado fotografias dela, porque as poucas que havia desapareceram depois do seu suicídio; mas não há dúvida de que era uma mulher bem feita e que atraía os homens, o que se podia ver pela frequência com que eles passavam à sua porta, espreitando para o balcão através das rendas da cortina que a escondia da rua, ao que se acrescentava o seu cuidado em usar perfume, o que era um trunfo naquele tempo em que não havia apelos da moda, e muito menos perfumarias ou boutiques. Esse facto era um sinal de pecado, fazendo com que se perguntasse para que é que uma mulher como ela precisaria de usar perfume, se não fosse para se fazer notada dos homens, e sobretudo de homens que ocupavam um lugar superior na escala social, o que implicava ter gostos requintados, sobretudo no que se refere a questões do outro sexo?
No entanto, muito mais tarde, numa altura em que os herdeiros deram a volta à casa para deitar fora as coisas velhas, que foram metidas em sacos de plástico e atiradas para o caixote do entulho, apareceu uma grande fotografia dessa mulher, num papel grosso e baço, de cor sépia, que apanhava o rosto e parte do busto, com os ombros ainda destapados, numa pose provocante, embora os lábios fechados não dessem a ver mais do que uma sensualidade reprimida, que só os olhos, claros e de uma transparência que insinuava o abismo do desejo por detrás deles, sugeriam. Ninguém deu pela importância histórica da fotografia, embora aqui a palavra história se aplique apenas a um destino singular, ao que os ombros seminus revelavam de uma abertura de costumes, e ao enigma que nascia daqueles lábios fechados, tristes, que pareciam falar pouco, ou então traduziam apenas a inquietação perante o fotógrafo, a expectativa angustiosa pelo ‘flash’, que vem de uma máquina formada por um aparelho enorme e por um homem que mete por cima da cabeça um pano escuro, num lugar que é também escuro e inquietante como uma cripta». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

Cortesia de Quetzal Editores/JDACT