jdact e cortesia de joserodrigues
«Tantas vezes olhei aquela casa, a singeleza e a humildade, ali só sustentadas
pelo salário da jorna, que apenas cobria o sustento e a parca vestimenta da sua
habitada. Tantas vezes admirei esteticamente aquele branco, puramente caiado,
aquele subtil jogo de volumes, sem delicado tratamento no remate da chaminé,
aquele casebre a resumir pobreza de cela, tamanho dos teres e haveres da dona.
A Tia Felícia veio à porta cumprimentar o Garcia, e muitas recomendações
para a sua senhora, disse. Vestida de luto carregado, com o lenço atado pela
cabeça, com nó corrido debaixo do pescoço, a assinar a viuvez fresca do marido,
que Deus lá tenha. De semblante muito triste, saudou-me com vossa mercê e, mais
nada, que o tempo era dorido.
A Tia Felícia, agradecida, depois, dos trabalhos e cuidados que lhe dispensei,
devotou-me as afeições dos precisados e deu-me, em troca, uma galinha branca,
com seis ovos, o melhor que tinha, coitada, que quem dá o que pode a mais não é
obrigado.
Chorou ela, chorei eu, comovido pela sublimidade daquele presente, franqueado
da mais prateada dádiva, que as lágrimas quiseram testemunhar, vencendo os
taludes das contenções, encarreiradas pelos sulcos da face, que com rapidez
tentei secar, com o lenço da mão, que era branco, para a mortalha das emoções.
Galinha branca, o mais precioso que ela tinha para pôr no ofertório a
Deus, em holocausto pela sua dor, nunca
o tributo, por qualquer patrocínio, grande que fosse, na fazenda pública, em
cartório ou em tribunal.
Que apaziguamento, que agasalho para a alma, naquele lugar, naquela
hora, onde houve nome o obrigado!
Vaidade de qualquer mãe, senti-me envaidecido da minha, da sua herança
de recatamentos que me arquitectaram frugalidades nas minhas efusões
espontâneas. Se ela me pudesse ver com aqueles vassalados engalamentos, como se
comoveria dos merecimentos que ao filho eram assim reconhecidos, apertando-me
ao calor do seu colo, de que nunca consegui afastar-me na vida.
O Garcia não me deixou resvalar outra vez e, amparando-me pelo braço,
levou-me para o trilho certo, que era aquela estrada, ao meio, o caminho a
seguir.
Com o peso desta dívida comigo, sempre que me cruzava com aquele luto,
em pessoa, apitava-lhe sempre do carro, sinalizando-me, com saudações largas,
desenhadas por generosos acenos de mão, que ela devolvia, com inclinações.
Na minha estada em Marvão, como foi referência aquela velhinha!
Sempre carpida de dores, alegrias ausentes, nem por festas, nem por aleluias,
a alma se lhe abria.
Compenetrei-me aos poucos de que a minha passagem por Marvão não se
podia esbater em sombras ou indiferenças, hasteadas em qualquer galeria de
vulgaridades ou de pensamentos breves. Amassei-me na magia que a terra
combinava com o encanto das pessoas e das amizades, seara onde não me foi
difícil trabalhar.
Fixando o seu olhar no meu, por baixo dos óculos, a auscultar a minha amaragem,
falando-me solidariedades, com silêncios, o Garcia disse para continuarmos em
frente, a subir a encosta, entremeando as bermas, ladeadas agora de vegetação
abundante, onde os vetustos carvalhos se deixam avizinhar de árvores mais moças
e mais vistosas. Transbordavam sobre os muros os galhos dissidentes, a que a
zelosa disciplina do cantoneiro ia impondo ordem paisagística, concursada na
Primavera com os verdes e, no Verão e Outono, com os amarelos e castanhos». In
Aníbal Belo, Carta de Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001,
ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT