terça-feira, 19 de junho de 2012

Homens, Espaços e Pobres. Séculos XI-XVI. Notas do Viver Social. Maria Helena Coelho. «O mundo rural à volta de Coimbra possui fortes potentados eclesiásticos citadinos como, entre outros, Santa Cruz e a Sé, promoveram e enquadraram a colonização e arroteamento destas terras do Mondego que se retalharam em múltiplos senhorios de abadengo»


jdact

Apontamentos sobre a Comida e a Bebida do Campesinato Coimbrão em Tempos Medievos
«O pão nosso de cada dia, ontem como hoje, não é igual para todos. Afirmação banal que não deixa de ser insofismavelmente uma verdade. Na sociedade de ordens os “laboratores” trabalhavam para sustento dos que rezavam pela comunidade, os “oratores”, ou dos que pegavam em armas para a sua defesa, os “bellatores”. Com o cansaço do seu corpo e suor do seu rosto ganhavam o pão alheio e era esse “labor-dolor” que lhes assegurava a salvação. A justificação ética da sua função na sociedade servia igualmente os interesses da economia feudal que vive e se estrutura em função da terra e dos seus rendimentos. Os camponeses lavram e semeiam as terras dos senhores e entregam-lhes, em rendas e foros, o pão e o vinho que do seu trabalho brotaram. O quadro é típico dos tempos medievais, mas perdura durante todo o Antigo Regime, ou mesmo mais além.
O mundo rural à volta de Coimbra não foge a estes parâmetros. Fortes potentados eclesiásticos citadinos como, entre outros, Santa Cruz e a Sé, promoveram e enquadraram a colonização e arroteamento destas terras do Mondego que se retalharam em múltiplos senhorios de abadengo. E ao longo dos séculos outros institutos religiosos ou membros da nobreza, a par de ricos vizinhos da cidade e vilas, foram tutelando o campo e os seus homens. O campesinato coimbrão não se define, assim, por aquela elite de homens-bons dos concelhos rurais, alguns cavaleiros-vilãos, que têm alódios ou disponibilidade para arrendar os grandes domínios senhoriais. A tónica é dada pela massa de lavradores, seareiros e cavões que amanham casais ou terras dos senhores e lhes entregam anualmente uma quota-parte da sua colheita e ainda alguns outros géneros, animais ou dinheiro, a título de foros ou direitos eclesiásticos.
Eram estes, na verdade, os camponeses-produtores que cultivavam o "pão" que os senhores arrecadavam, permitindo-lhes que o mesmo se transformasse em carne, pescado ou iguarias, enquanto na sua mesa ele se tornava apenas em pão de segunda. O cereal e o vinho constituíam, pois, a essência da dieta alimentar dos homens do campo. Mas, como diz Louis Stouff, a hierarquia das pessoas define-se pela cor do seu pão e a qualidade da sua bebida. O pão do camponês é escuro, no geral de mistura, meado, terçado ou quartado, conforme o número de cereais que o compõem. O pão alvo, só de trigo, era mimo de ricos ou guloseima de pobres em dias festivos. Grande variedade de pão saía de um forno da cidade, situado na freguesia de Santa Justa, onde a forneira cozia pão alvo e de segunda, tanto grandes como pequenos e ainda "rellam" (talvez pão de rala, ou seja, de certos fragmentos de trigo) e "massamilho" (certamente pão de milho, equivalente à boroa que, aliás, também se conhecia). À volta da cidade, nas boas terras do campo, cultivava-se, muitas vezes rotativamente, o trigo (mourisco, espécie de trigo duro, ou o galego e tremès, trigos moles) e o milho e nas terras do monte o centeio e a cevada, dispondo-se, assim, na região, de todos os cereais panificáveis.

O homem do campo consumia, no dia-a-dia, grandes porções de cereal, e por isso fabricava, desde logo, pães grandes, que os senhores cobiçavam e exigiam nos foros que arrancavam aos lavradores. O mosteiro de Celas, num aforamento de um casal em Miranda, estipulava, entre os foros, "pães grandes de calo". A colegiada de São Salvador contendia com os lavradores de um casal, em Eiras, pelo facto de as regueifas, que constituíam o foro da pedida, serem pequenas e determinava que de um alqueire, pela medida velha coimbrã, de farinha de trigo mourisco peneirada pela antemão, fizessem 12 regueifas (portanto, com cerca de 833 g). Mais explícito é ainda o mosteiro lorbanense, que reclama de dois moleiros, em cada ano, 4 pães alvos, bons e grandes como aqueles que faziam em suas casas para comer. Só que tais pães não seriam de trigo, mas de mistura.
Tão imprescindível como o pão era o vinho, que abundava nesta área. Não havia casa que não se rodeasse de vinha entre as culturas circundantes. Entretanto cultivava-se maciçamente no aro citadino, ombreando com a oliveira, nas encostas dos povoados do Mondego e ainda na fachada marítima desta região. Conhecia-se o vinho vermelho e branco, se bem que, para o século XVIII, Manuel Dias Baptista afirme que "nesta Comarca a maior parte das uvas são brancas, de sorte que as negras apenas bastão para tingir o mosto branco" e talvez por esta razão as duas variedades de vinhas se cultivassem indistintamente nos terrenos. O vinho era bebido simples, mas também misturado com água, duas partes de vinho e uma de água, para os mais afortunados, ou mesmo metade de vinho e metade de água. Despendia-se muito vinho no acompanhamento das refeições ou apenas em matar a sede, pois "beber" não tinha outro sentido que não beber vinho». In Maria Helena Cruz Coelho, Homens, Espaços e Pobres, Séculos XI-XVI, Notas do Viver Social, Livros Horizonte, 1990, ISBN 972-24-0756-2.

Cortesia de L. Horizonte/JDACT