sábado, 9 de junho de 2012

A historiografia sociológica de António Sérgio. Victor Sá. «Se Cortesão se elevou a uma posição cimeira (e pioneira) de historiador, Sérgio, por sua vez, não foi, não quis ser, um historiador no sentido estrito do termo, um erudito da História»



Cortesia de wikipedia

Das Miragens da História à Visão Sociológica dos Factos
«Depois dos primeiros rasgos de Oliveira Martins no século XIX, a perspectiva sociológica foi introduzida na historiografia portuguesa a partir da segunda década do nosso século. Coincide esta introdução com o período histórico da vigência da Primeira República, e não é de todo estranha a essa circunstância.
Contribuiu para isso, efectivamente, o movimento de renovação mental encetado por uma associação ou agrupamento de intelectuais republicanos e nacionalistas que se congregaram sob a designação significativa de «Renascença Portuguesa». Jaime Cortesão, sócio fundador, António Sérgio e Raul Proença imprimiram-lhe, em contraposição com outra corrente, a dos «saudosistas», uma feição progressista, racional, crítica e interventora.
Em 1912 apareceu na revista daquela agremiação, A Águia, um artigo de Cortesão, então professor liceal no Porto, sobre o ensino da História pátria. Nele sobrepunha os factores democráticos, a acção do povo na história, aos conceitos tradicionais assentes no heroísmo individual e preconizava uma nova orientação para o ensino da disciplina: «Para que as escolas dêem à mocidade portuguesa o conhecimento mais completo da alma da sua Raça [sic] é antes de mais nada necessária uma nova orientação no ensino da História pátria, sob os diferentes aspectos, e tanto na escola primária como na secundária. Ensinar a História pátria segundo os factos mais notáveis do reinado de tal ou tal figurão é tudo quanto há de mais falso, pernicioso e bolorento».
Logo no ano seguinte era Sérgio quem, então no Rio de Janeiro, lançava sobre a História portuguesa uma série de quesitos conducentes a iluminar, à luz nova da interpretação sociológica (e também económica, e também geográfica, e também cultural) múltiplos aspectos que permitissem responder sobre vários problemas inquietantes da sociedade portuguesa, nomeadamente o seu persistente bloqueamento e o isolamento de Portugal da Europa. Quais as causas históricas deste atrofiamento social e cultural?
Foi na via destas inquietações, e com vista à sua superação inovadora, que tanto Sérgio como Cortesão se viraram para os problemas da História. Cortesão havia mesmo de fixar mais tarde a sua vocação de historiador, sobretudo a partir de 1922, no sentido de uma profunda e renovadora investigação, quer no que respeita aos factores e circunstâncias dos Descobrimentos Portugueses, quer na busca das raízes democráticas na formação de Portugal. Com uma visão totalizante da História «compreender a totalidade da nossa História», defendia que a «história social domina hoje toda a História», e, consequentemente, «caminhando a par com a geografia humana e a sociologia, sem se confundir com elas, assenta de um lado sobre o económico, e, do outro, sobre as variações e as modalidades da distribuição do povoamento humano». Esta absorção de diferentes disciplinas era o resultado do despertar das ciências sociais, que em Portugal se afirmara desde fins do século passado. A pluridisciplinaridade entrava assim na historiografia portuguesa do século XX pelas mãos de Cortesão e Sérgio.
Se Cortesão se elevou a uma posição cimeira (e pioneira) de historiador, Sérgio, por sua vez, não foi, não quis ser, um historiador no sentido estrito do termo, um erudito da História. Ele próprio o afirmava (em 1925): «…a minha pessoa, que não tem pretensões a historiador» 3 ou (em 1932): «Não sou erudito nem pretendo sê-lo»; «o que me interessa não é a História, mas somente a mentalidade com que nós a abordamos: por isso, e só por isso, tenho eu escrito sobre os temas da História».
A interpretação histórica interessava-lhe, porém, por dois aspectos para ele fundamentais. Por um lado, pelo que ela representa de exigência crítica, a interpretação sendo uma questão essencialmente de coerência do pensamento. Por outro lado, do ponto de vista social, pelo que ela implica no comportamento. Já em 1920 havia dito: «Águas passadas não movem moinhos; move o moinho, porém, a atitude do presente perante elas, e por isso esta, e só esta, tenho eu por alvo na minha crítica». E em 1932: «A História, ao cabo de contas, serve sobretudo para nos libertarmos dela». Explicará noutra altura (1941) o intento prático e pedagógico com que encarou os problemas da História nacional: 
  • «Tomo-a como um meio dos mais adequados para nos familiarizarmos com os casos da nação presente, com as necessidades e os problemas de Portugal de agora. Penso no agora, e na tua acção. O deixarmos aos mortos o enterrar os seus mortos e o seguirmos “avante para além dos túmulos” (como aconselhava um Goethe) é hoje mais necessário do que nunca o foi».
Foi a atitude do pedagogista, de que se reclamou toda a vida, que lhe solicitou a indagação da História. Escrevia em 1932: «Pouco me interessaria a atitude de espírito com que um povo considera a sua própria História, se ela não influísse na atitude de espírito com que se ele orienta no seu viver presente. Mas influi.» Isto porque «quem vê com miragens o seu passado constrói com miragens o seu futuro». E em 1959 esclarecia mais uma vez:
  • ‘O meu objectivo não é propriamente o de informar sobre a História, mas o de formar o espírito da gente moça para uma visão filosófica e sociológica dos factos, como preparação para a obra da elevação do Povo, que lhe cumpre agora empreender’».
In Victor Sá, A historiografia sociológica de António Sérgio, Instituto de Cultura Portuguesa, CV camões, Biblioteca Breve, Gráfica da Livraria Bertrand, 1979.

Cortesia de Instituto Camões/JDACT