sexta-feira, 1 de junho de 2012

Alfacinhas. Alfredo Mesquita. «Pelo menos, os autores conseguiam isto, que á primeira vista se nos afigurava muito simples: uma pessoa lia-os, e ia logo entendendo o que eles queriam dizer, o que não acontece já com os de agora, porque uma pessoa lê-os, relê-os, e treslê, sem que haja meio de lhes meter dente»



Cortesia de wikipedia

«Vai quase desaparecendo um género de literatura que teve em Portugal bastantes amadores e bem se coadunava com o nosso feitio e o nosso gosto. Quase desaparecendo, digo bem, pois que dos vivos e velhos que o cultivaram com mais entusiasmo, raros são já os que ainda dão sinais de vida.
Os tempos eram muito outros, e muito outra a gente desses tempos. Havia mais alegria do que hoje, havia incomparavelmente muito mais alegria; basta mesmo dizer que havia alegria, e está dito tudo, porque a verdade é que hoje já não a há. Havia também muita despreocupação, outra coisa que também acabou. A literatura, portanto, era o reflexo duma tal ventura de ânimos.
Claro que a alegria não era tanta que não deixasse haver gente de testa franzida; mas gostava-se do devaneio, da fantasia ingénua e da facécia, e tudo isso entretinha e divertia muito mais a gente do que as teses, as psicologias, e os simbolismos da literatura moderníssima. Pelo menos, os autores conseguiam isto, que á primeira vista se nos afigurava muito simples: uma pessoa lia-os, e ia logo entendendo o que eles queriam dizer, o que não acontece já com os de agora, porque uma pessoa lê-os, relê-os, e treslê, sem que haja meio de lhes meter dente.
Os efeitos de enternecimento, de comoção, ou apenas de risota, obtinham-se por meios simplicíssimos.
A escola da justa moderação na forma de escrever e descrever tinham então mestres como Júlio Diniz e Júlio César Machado, e a popularidade não bafejava quem lhes não seguisse as pisadas. Se o propósito do escritor num dado momento era o de fazer chorar, a lágrima borbulhava e corria por si ao canto do olho, sem ser preciso, como hoje, estar a puxar por ela como quem puxa por um cordão de campainha. Se o escritor queria fazer rir, o riso vinha como vinha a lágrima, sem também ser preciso descalçar ao leitor a chinela e fazer-lhe cócegas na sola do pé.


O descritivo da paisagem, da cena caseira, do episódio de todos os dias, era quando muito meia pagina de livro pequeno, em letra grada, e tudo ficava dito. O uso do adjectivo era quanto possível parcimonioso, e entrava na descrição como o sal na comida. Um clarão de luar erainvariavelmente prateado; uma manhã de Abril havia de ser sempre clara e uma noite de Novembro sempre tenebroso. E as searas sempre louras, o arvoredo sempre frondoso, o murmúrio das águas sempre brando, o vento sempre sibilino.
Se o autor entrava em casa do herói ou heroína da sua história e dava fé do que lá havia de mobiliário e roupas, era escusado ficar à espera de que ele nos contasse quantas cadeiras vira na sala, quantos quadros nas paredes, quantos frangos na capoeira. Dizia-nos somente se se tratava de habitação pobre ou rica, modesta ou luxuosa, e a tal respeito nem mais meia palavra.
As fisionomias das criaturas, como o aspecto das coisas, não lhes tomavam muito tempo a pintá-las. Os tipos de formosura eram dois ou três, dados em simples variantes:
  • da cor de olhos: azuis, pretos ou castanhos;
  • de cor da pele: pálida, rosada, clara, morena;
  • de medidas da estatura: alta, baixa, regular;
  • e um ou outro de alguns sinais particulares.
 As qualidades, como os defeitos morais, não davam margem a largas apreciações. As personagens eram ou boas pessoas ou malvados. Para facilitar a narração, não se admitia o meio-termo. Um bombeiro era sempre um benemérito, um professor de instrução primaria sempre uma vítima, uma sogra sempre uma fera». In Alfredo de Mesquita, Alfacinhas, Parceria de António Maria Pereira, Livraria Editora, Lisboa, 1910, Library University of Toronto, 1968, PQ 9261 M47A4.




Cortesia de University of Toronto/JDACT