Maria Teresa Horta Meninas.. «A nossa avó, que viveu há séculos e escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao desembarque dos reis…»
Efémera
«(…) Encostava a minha cara ao cetim da saia lisa do seu vestido fúchsia, e
de mãos dadas olhávamos em silêncio o rio de um verde espesso manchado de
azul-cobalto, serenamente a bordejar os primeiros degraus do cais, esverdeados
de limos; degraus de pedra grossa desgastados pelos séculos, por onde as águas
subiam nas marés altas e se estendiam devagar, envolventes, de manso rodeando,
contornando as duas colunas que pareciam fitar o outro lado do Tejo. O sol de
Agosto cegava-nos com a sua incandescente luz branca, fazendo brilhar o cabelo
louro que ela usava em ondas a tocar os ombros frágeis, haste de tão delgada e
dúctil a fazer lembrar as actrizes de cinema; com uma perversa languidez fatal
de madressilva em flor ou de pedra preciosa rubra. Sempre que ali demorávamos
mais tempo, expectantes mas amodorradas embora atentas, soltava a minha mão da
sua, trepava para um dos bancos incrustados na amurada a separar-nos do rio e
debruçava-me, a fim de sentir a vertigem, a tontura a tomar-me, sensação que
pensava vir do fundo do espelho obscuro e frio daquelas águas, num chamamento
impossível. E se ela estendia os dedos macios até ao meu braço que a manga de
balão deixava a descoberto, a querer segurar-me, logo se distraía de novo; e eu
mal sentia a frouxidão dos seus dedos, voltava-me a tentar fitar-lhe os olhos
de anil, repletos de cintilação da tarde por onde, geniosa, a minha mãe
escapava com a astúcia de mulher rebelde e deleitosa.
Efémera.
Por trás dela havia a largueza quase
quadrada do Terreiro do Paço, com as suas arcadas abertas cor de mostarda clara
e as ruínas do terramoto ao fundo, assim como o Arco da Rua Augusta encimado
pela escultura de uma mulher de manto que eu sabia chamar-se Glória, a coroar o
Génio e o Valor, tinham-me ensinado. No centro empedrado de pedra miúda, ficava
o pedestal de mármore com a estátua do rei dom José I a cavalo, e isso já
pertencia à História, embora na altura não o soubesse. Parecia-me por vezes
escutar o barulho abafado de passos ágeis vindos de um outro tempo, o som de
botinas e de sapatos frágeis, assim como um roçagar de saias de seda e saias de
sombra, dos saiotes deslizando uns nos outros. Mais impreciso ainda era o
sussurro das rendas e dos cetins, saias enfunadas em ternas transparências…,
shantungs e musselinas e tafetás, mas sobretudo de sedas matizadas e de coletes
bordados a ponto de crivo, abainhados de prata.
A nossa avó, que viveu há séculos e
escrevia poemas, vinha até aqui onde estamos assistir ao embarque e ao
desembarque dos reis, contava minha mãe como se inventasse. E eu
quedava-me a imaginar essa avó descoberta a partir de uma gravura que
encontrara num livro encadernado, há muito esquecido sobre a mesa baixa da
nossa sala de estar. Olhar inteligente e arguto num rosto belo de traços
delicados, os lábios de veludo toldados pelo ligeiríssimo sorriso. Era deste
modo que a reprodução em papel brilhante nos mostrava Leonor de Almeida. Olhar
determinado de luz, iludindo-se.
Chegava a sonhar com ela enquanto
menina, antes de ter oito anos e entrar com a mãe e a irmã para o convento de
São Félix, por ordem de Sebastião José de Carvalho Melo, e antes também de
fazer poesia. Distinguia-a debruçada na amurada onde eu tantas vezes já
estivera com o pensamento nela, desejando descortinar tudo o que dali ela
abarcara a navegar no Tejo: as faluas, as gabarras de vela de dois mastros, as
barcaças… A passarem ao largo, na sua mansa faina». In Maria Teresa Horta,
Meninas, Publicações dom Quixote, 2014, ISBN 978-972-205-611-3.
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