NOTA:: Mário Rainho faleceu no dia 2 de Janeiro de 2025, com 97 anos
«Daquele aconchego agasalhante, dado a peregrino de longe que vinha pedir pousada, tomei boa nota para a vida, evocando, da memória, os versos de ouro de Pitágoras, quando impõem o dever de honrar os pais e de agradecer a hospitalidade do estalajadeiro. Agora, em triunvirato, o Garcia, eu e o Mário Rainho continuamos a nova rota traçada por via de destinos e de circunstâncias, enleados de redes de sentimentos e de olhares, que o andar dos passos mostraram ser comuns.
O Mário Rainho aproveitou para me levar às Casas Amarelas, que mais não eram
do que a sede do poder judicial, onde também estava instalada a Conservatória
Registral, que ele próprio personalizava. De notável espírito de observação,
era ali, por dentro daquelas janelas de guilhotina, o seu terreiro
profissional, onde a sua vocação se professava, à lente, a analisar os
documentos e cartas públicas do notário de Marvão, que, todas as semanas,
desapiedadamente, lhe deixava, aos montes, fruto da sua exaração semanal, com
letra miudinha, o que o obrigava a levantar, obliquamente, os óculos, para
enxergar as certezas daquelas verdades declaradas.
Haveria eu de lembrar por muitos anos a sua assinatura, com uma grande
cauda sobreposta e alongada, quase elíptica, a abranger o seu nome todo, que,
com o andar dos anos, de elisão em elisão, se ia sintetizando, desnudando-se
dos arredondamentos originários. No intervalo dos seus tiques registrais,
aliviava-se, com prazer, a falar de teatro, de tipografias, dos presencistas, e
muito especialmente de Francisco Bugalho e do irmão e de José Régio e
das suas Histórias de Mulheres,
entretendo-se na discussão da lenda de misoginias, que acerca dele se
cultivavam. Os dias futuros haviam de me mostrar a sua enorme e talentosa
capacidade de interpretar papéis, de difícil tradução, na arte de representar.
Era ininterrupta a sua constância, no apelo aos elementos da sua equipa de
teatro, que dirigia, exigindo-lhes presenças, que só a luta contra o cómodo da
televisão vencia, deixando-as, livres, para o ensaio ou para a declamação. A
militância por todos os valores da sua terra faziam dele um centro de atenções,
que testemunhava a circum-navegação de todos os acontecimentos colectivos na
Vila. O Mário Rainho não era qualquer pessoa subalterna a valores do
espírito, sempre rente ao saber, sempre ao pé do sortilégio da beleza
incandeante, que o motivara a ser quem é, formatado pelas circunstâncias da
vida, marcada que foi, logo na infância, pelas letras que apreendera a colocar
na tipografia, umas ao lado das outras, o que lhe propiciou o amanhecente gosto
pela leitura. Era um caso típico de autodidaxia, no qual
conseguiu forjar uma personalidade de vigores e robustecimentos, donde emergem
virtudes e valências, que sobrepairam à vulgar mediania, onde, latentes, as
mediocracias medram.
O Mário Rainho, agradecido ao acaso por aquele tão fortuito
encontro, contente de mim, ao lado dele e do Garcia, ao seu lado, ia
ilustrando a Vila dos seus varões ilustres, do passado e do presente, quando me
sugeriu, por ali estarmos perto, dar uma saltada à Câmara da vila, onde o Presidente
Carolino teria, com certeza, prazer em conhecer-me, e com quem eu gostaria
de falar. Que sim, que era boa ideia, e lá fomos os três, ao mesmo tempo, ao
mesmo lado, como que a gradar as ruas e os acontecimentos que se tinham
rebolado sobre elas.
Seguimos pelas Carreiras de
Cima e fomos lá à frente, onde parámos, para entrar, subindo, uma
grande escadaria, que se atingia, depois de ultrapassado um precioso portão
de ferro forjado, como que a dizer do subido e superior ar daquela casa
municipal, domicílio das respostas às solicitações dos cidadãos da vila e do
seu termo. O Presidente apareceu, o Mário Rainho disse quem eu
era, e com saudações contagiantes nos cumprimentámos, com delicadezas mútuas,
que o tempo haveria de decretar duradoiras». In Aníbal Belo, Carta de
Marvão, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2001, ISBN-972-8184-66-2.
Cortesia da U.F. Pessoa/JDACT
Castelo de Vide, Mário Rainho, Aníbal Belo, Marvão, JDACT,