«(…) Ou só os trazia a morte de um dos cônjuges, às vezes longamente ansiada em silêncio e menos vezes procurada ou induzida ou buscada, em geral ainda mais em silêncio, ou seria, melhor dizendo, em indizível segredo. Ou a morte dos dois, claro, e então já não havia mais nada, só os ignorantes filhos que tiveram, se havia e sobreviviam, e uma breve recordação. Ou talvez uma história, ocasionalmente. Uma história subtil e quase nunca contada, como não se costuma contar as histórias da vida íntima, tantas mães impávidas até o último alento, e também tantas não mães; ou talvez sim, mas em sussurros, para que não sejam por completo como se não tivessem sido, nem fiquem no mudo travesseiro no qual, em prantos, afundou o rosto, nem tão só à vista do sonolento olho entreaberto da lua sentinela e fria.
Eduardo Muriel tinha um bigode
fino, como se o tivesse deixado crescer quando o actor Errol Flynn era uma referência
e depois tivesse esquecido de mudá-lo ou espessá-lo, um desses homens de hábitos
fixos no que diz respeito a seu aspecto, dos que não se dão conta de que o
tempo passa e as modas mudam nem de que estão envelhecendo, é como se isso não
lhes dissesse respeito e o descartassem, e se sentissem a salvo do transcurso,
e até certo ponto têm razão de não se preocupar nem dar importância: por não
condizer com a sua idade, a mantêm sob controle; não cedendo a ela no aspecto
externo, acabam por não assumi-la, e assim os anos, temerosos, se avalentoam
com quase todo mundo,, os rondam e rodeiam, mas não se atrevem a se apossar
deles, não se assentam em seu espírito e tampouco invadem sua aparência, sobre
a qual vão apenas lançando um lentíssimo granizo ou penumbra.
Era alto, bem mais que a média de
seus companheiros de geração, a seguinte à de meu pai, se é que não a mesma,
ainda. Era forte e estilizado por isso ao primeiro olhar, embora sua figura não
fosse ortodoxamente viril: era um tanto estreito de ombros para a sua estatura,
o que fazia parecer que o abdomem se alargava apesar de não ter nenhuma gordura
nessa zona nem inconvenientes cadeiras protuberantes, e dali surgiam umas
pernas compridas que ele não sabia onde colocar quando estava sentado:
cruzava-as (e era o que preferia fazer com elas, entre tudo), o pé da que
ficava em cima alcançava o chão naturalmente, o que algumas mulheres orgulhosas
de suas pantufas, não desejam mostrar uma pendente, nem engrossada ou deformada
pelo joelho que a sustenta, conseguem mediante artificialidade e escorço, e com
ajuda de seus saltos altos. Por essa estreiteza dos ombros, Muriel costumava usar
casaco com ombreiras bem disfarçadas, acho, ou então o alfaiate as
confeccionava com ligeira forma de trapézio invertido (ainda nos anos 70 e 80
do século passado ia ao alfaiate ou o recebia em sua casa, quando isso já era
incomum).
Tinha um nariz bem recto, sem sombra
de curvatura apesar de seu bom tamanho, e no cabelo denso, penteado com água e
repartido, como certamente sua mãe o penteara desde criança, e ele não via razão
para infringir aquele antigo ditame, brilhavam alguns fios brancos dispersos
pelo castanho escuro dominante. O bigode fino pouco atenuava o espontâneo e
luminoso e juvenil do seu sorriso. Esforçava-se para refreá-lo ou guardá-lo,
mas com frequência não conseguia. Havia um fundo de jovialidade em seu carácter,
ou um passado que emergia sem que tivesse de lançar a sonda em grandes
profundidades. Não obstante, também não o convocava em águas muito superficiais:
nelas flutuava certa amargura imposta ou deliberada, da qual não devia se
sentir causador, mas, no máximo, vítima». In Javier Marías, Assim Começa o Mal, 2015, Alfaguara,
ISBN 978-989-665-008-7.
Cortesia de Alfaguara/JDACT
JDACT, Javier Marías, Literatura,