terça-feira, 6 de junho de 2023

O Último Cabalista de Lisboa. Richard Zimler. «Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio. Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo?»

 

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Ao lado da jovem estava um mastim, vestido com uma indumentária de trovador azul e amarela. No fundo vermelho da carruagem repousava um cofre de prata. Mas só me apercebi destes últimos pormenores quando o castelhano ordenou ao cocheiro para seguir. Afastei-me a observar a cena, como muitas vezes faço para a imprimir vividamente no que meu tio chama a minha memória de Tora. Quando a porta se fechou, o fidalgo inclinou-se para mim através da janela e murmurou numa voz com cheiro a vinho:

Não tenhas medo. O teu amigo não morre durante as festas. E para os cocheiros gritou: - Toca a andar! Temos aqui um ferido! No meu coração a curiosidade e a apreensão disputavam-se enquanto os cocheiros chicoteavam os cavalos. Quem seriam aqueles castelhanos? Saberiam que éramos judeus secretos?! Estaria o fidalgo a troçar de mim ou antes a revelar-me a sua afinidade? Por instantes, ainda vi uns dedos tão delicados como os de uma criança agarrados à janela da carruagem até ela desaparecer ao fundo da rua. Correram então uma cortina que silenciou as minhas questões.

Encontrei meu tio no pátio, a jogar xadrês  com Farid. Tinha no regaço o xaile cuidadosamente dobrado, com os tefelins por cima. Antes que as minhas forças sejam dizimadas por este pagão, vamos ao hospital ver se Diego está a ser bem tratado, disse-me, mal me avistou. Farid, lendo-lhe os lábios, riu-se. Como queríamos vestir roupas para sair, dirigimo-nos a casa e, ao entrar na cozinha, perguntei-lhe porque dissera que o ataque a Diego podia ter sido planeado.

O que é que vive durante séculos, mas que pode morrer ainda antes de nascer?, perguntou, à laia de resposta. Nada de enigmas, queria era que me respondesse, disse eu, rolando os olhos.

Ele franziu o sobrolho e dirigiu-se para o seu quarto. Uma semana mais tarde, descobri a resposta ao paradoxo de meu tio. Tivesse eu compreendido mais cedo, teria podido mudar em ouro o nosso destino de chumbo? Escolhemos um caminho que bordejava o rio, pois a inconstância do vento atormentava-nos agora com o cheiro de uma das esterqueiras da cidade fora das muralhas. Os cemitérios estavam a abarrotar e ultimamente os escravos africanos que morriam eram atirados para cima dos montes de esterco. Tudo o que os abutres e os lobos não conseguiam apanhar a tempo entrava em putrefacção, o que, misturado aos excrementos, produzia um fedor de pesadelo que nos causticava a pele e os ossos como algum ácido desconhecido.

Ao passarmos na Porta do Chafariz dos Cavalos, ocorreu-me ao espírito o arrepio metálico que os portões da judiaria Pequena provocavam quando encerravam os judeus durante a noite. Um brado vindo de cima fez-nos voltar. Do cimo dos degraus da Sinagoga, o nosso antigo rabino, Fernando Losa, fazia-nos sinal para esperarmos. Depois da sua conversão, tinha-se tornado num mercador de alfaias do culto cristão, sendo mesmo o fornecedor do bispo de Lisboa, maldito seja. Só nos faltava mais este, resmunguei  Que terrível pecado estaremos a expiar?» In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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