sábado, 18 de maio de 2024

O Último Catão. Matilde Asensi.«Uma coisa é escrever umas palavras num computador e que a máquina procure o mesmo texto nas bases de dados, e outra é cotejar duas imagens de um objecto…»

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«Por que precisamente sete e não oito, ou cinco ou quinze, por exemplo? Por que todas diferentes? Por que todas envoltas por formas geométricas, como claraboias medievais? Por que todas encimadas por uma pequena coroa raiada...? Jamais poderíamos descobrir, me dizia compungida, era demasiado complexo e absurdo. Levantava o olhar das fotografias e dos croquis e a pousava na silhueta de papel, para ver se a distância das cruzes no corpo me dava a pista; mas não via nada, ou, ao menos nada que me ajudasse a resolver o hieroglífico, assim descia de novo os olhos até a mesa e me concentrava no estudo de cada uma das peculiares cicatrizes coroadas.

Glauser-Róist apenas pronunciou uma palavra durante aqueles dias; passava as horas mortas teclando no computador e eu sentia nascer em meu interior um rancor absurdo contra ele por perder o tempo tonteando daquela maneira enquanto minha cabeça ia se convertendo lentamente em pasta de papel.

A passos gigantescos se aproximava o domingo, 19 de Março, dia de São Giuseppe, e se impunha começar a preparar minha viagem a Palermo. Ia pouco a casa, apenas duas ou três vezes ao ano, mas, como boa família siciliana, os Salinas permaneciam indissoluvelmente unidos, para bem ou para mal, inclusive além da morte. Ser a penúltima de nove irmãos, daí meu nome, Otávia, a oitava, tem muitas vantagens quanto ao aprendizado e uso das técnicas de sobrevivência; sempre há algum irmão ou irmã mais velha disposta a torturar ou a humilhar debaixo do peso de sua autoridade, suas coisas são do primeiro que as apanha, seu espaço é invadido pelo primeiro que chegar, seus triunfos ou fracassos já foram os triunfos ou fracassos dos que vieram antes, etc...

Com certeza, a união entre os nove filhos de Filipa e Giuseppe Salina era indestrutível: apesar de minha ausência de vinte anos, da de Pierantónio, franciscano na Terra Santa, e da de Lúcia, dominicana residente na Inglaterra, contavam connosco para organizar qualquer festejo familiar, comprar qualquer presente para nossos pais ou adoptar qualquer decisão colegiada que afetasse à família.

Um dia antes da minha partida, o capitão Glauser-Róist voltou do almoço nos barracões da Guarda Suíça com um estranho brilho metálico em seus olhos cinzentos. Eu continuava totalmente enfrascada na leitura de um tedioso tratado sobre a arte cristã dos séculos VII e VIII, com a vã esperança de encontrar qualquer alusão ao desenho de alguma das cruzes.

Doutora Salina, murmurou após fechar a porta às suas costas. Tive uma ideia. Estou escutando, respondi, afastando de mim, com as duas mãos, o pesado compêndio. Precisamos de um programa de computador que coteje as imagens das cruzes do etíope com todos os ficheiros de imagens do arquivo e da biblioteca. Levantei as sobrancelhas em um gesto de estranheza. É possível fazer isso? Perguntei. O serviço de informática do arquivo pode fazê-lo. Fiquei pensando uns instantes. Não sei... Objectei pensativa. Deve ser muito complicado. Uma coisa é escrever umas palavras num computador e que a máquina procure o mesmo texto nas bases de dados, e outra é cotejar duas imagens de um objecto que podem estar arquivadas em tamanhos diferentes, em formatos incompatíveis, tomadas de ângulos distintos ou, inclusivé, com uma qualidade tão ruim que o programa não possa reconhecê-las como parecidas. Glauser-Róist me olhou com pena». In Matilde Asensi, O Último Catão, 2005, Editora Dom Quixote, ISBN 978-972-202-904-9.

Cortesia de EDQuixote/JDACT

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