terça-feira, 6 de abril de 2021

A Ceia Secreta. Javier Sierra. «Não menos de quinze homens a vigiavam, espetando com espadas os sacos de cereal que as carroças queriam desembarcar perto das cozinhas»

Cortesia de wikipedia e jdact

O Áugure

«(…) Um trecho antes de chegar à Porta Ticinese, o mais nobre dos acessos desse burgo, um amável mercador se ofereceu para me acompanhar até a torre de Filarete, a entrada principal da fortaleza do Mouro. Situado num dos extremos da urbe, o castelo dos Sforza parecia uma réplica em miniatura das enormes muralhas da cidade. O mercador riu ao ver minha cara de espanto. Disse que era curtidor em Cremona, um bom católico, e que me acompanharia com prazer até ao interior da fortaleza em troca da minha bênção para ele e sua família. Aceitei o acordo. O bom homem me deixou diante do castelo do duque exactamente à hora nona. Aquele lugar era ainda mais magnífico do que eu havia imaginado. Bandeirolas com a terrível insígnia dos Sforza, uma espécie de serpente gigante devorando um pobre infeliz, pendiam das ameias. Fitas azuis ondulavam ao vento, ao passo que meia dúzia de enormes chaminés, cravadas em algum lugar do interior da fortaleza, exalavam grandes lufadas de uma fumaça negra e densa. A entrada de Filarete constava de uma ameaçadora ponte levadiça e duas comportas rebitadas de bronze, dobradas sobre si mesmas. Não menos de quinze homens a vigiavam, espetando com espadas os sacos de cereal que as carroças queriam desembarcar perto das cozinhas.

Um daqueles homens uniformizados me indicou o caminho. Devia dirigir-me ao extremo oeste da torre, já dentro da fortaleza, e perguntar pela área de recepção de visitantes e o gabinete de luto que havia sido instalado para receber as delegações que viriam ao funeral de donna Beatrice. Meu cicerone de Cremona já me havia advertido de que toda a cidade pararia quando chegasse esse momento. E, de facto, a essa hora não havia muita actividade. Fiquei surpreso ao ver que o secretário do Mouro, um espigado cortesão de rosto inexpressivo, não demorou a me receber. O servidor se desculpou por não poder conduzir este servo de Deus até ao seu senhor. Ainda assim, examinou minha carta de apresentação com ar céptico, comprovou que o selo pontifício era verdadeiro e a devolveu acompanhada de um gesto de desolação. Lamento, padre Leyre, Marchesino Stanga, assim se chamava, desmanchou-se numa torrente de desculpas. Deve entender que o meu senhor não receba ninguém após a morte da sua esposa. Suponho que possa imaginar o difícil momento que atravessamos e a necessidade que tem o duque de ficar sozinho. Claro, assenti com fingida cortesia.

Não obstante, acrescentou, quando passar o luto, eu lhe transmitirei a notícia da sua presença na cidade. Eu teria gostado de poder olhar nos olhos do Mouro e deduzir, como em tantos interrogatórios que havia presenciado, se ocultavam ou não as sinistras sombras da heresia ou do crime. Mas aquele servidor com um adorno de cabeça grená guarnecido de peles e gibão de veludo, que falava com ares de mesquinha superioridade, estava decidido a me impedir: também não podemos abrigá-lo, como é nosso costume, disse com secura.

O castelo está fechado e não recebemos hóspedes. Eu vos rogo, padre, que reze pela alma de donna Beatrice e que regresse passados os funerais. Então, nós o receberemos como o senhor merece. Requiescat in pace, murmurei enquanto me persignava. Assim farei. Também rezarei por vocês. Tive uma sensação estranha. Sem possibilidade de me acomodar perto do duque e sua família, frustrado no meu propósito de deambular com mais ou menos liberdade pelo seu castelo, minhas primeiras investigações tomariam mais tempo. Tinha de conseguir um alojamento discreto que me garantisse algum ambiente de estudo. Com os documentos de Torriani queimando na minha bolsa, precisaria de calma, três pratos de comida quente ao dia e uma boa dose de sorte para conseguir decifrar o seu segredo. Não era sensato que um frade buscasse pousada entre os laicos, de modo que minhas opções logo se reduziram a duas: ou me instalava no veterano convento de Santo Eustórgio ou no novíssimo de Santa Maria delle Grazie, onde a possibilidade de cruzar com o Áugure excitava a minha imaginação. Depois, com o tecto resolvido, teria tempo de me dedicar ao enigma que o mestre Torriani havia me entregue em Betânia.

Reconheço que a Divina Providência fez um trabalho exemplar. Santo Eustórgio logo se revelou como a pior das opções. Situado muito perto da catedral, junto ao mercado, costumava estar cheio de curiosos que não tardariam a se perguntar que tipo de assunto mantinha ali um inquisidor romano. Embora a sua localização pudesse dar-me certa perspectiva sobre as actividades do Áugure, poupando-me do risco de encontrá-lo cara a cara sem saber de quem se tratava, também sabia que me oferecia mais inconvenientes que vantagens. Quanto à outra opção, a de Santa Maria delle Grazie, além de ser o suposto refúgio do meu objectivo, só apresentava outro pequeno, mas superável, defeito: ali iam ser celebradas as multitudinárias exéquias de donna Beatrice. Sua igreja, reformada havia pouco tempo por Bramante, estava prestes a se transformar no foco de todos os olhares». In Javier Sierra, A Ceia Secreta, 2013, Editora Planeta, 2014, ISBN 978-854-220-327-1.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

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