terça-feira, 13 de abril de 2021

A Trégua. Mario Benedetti. «Onde ela estiver, se é que está, que lembrança terá de mim? Afinal, a memória importa alguma coisa?»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Não tenho saída. A conversa com Vignale me deixou uma obsessão: recordar Isabel. Já não se trata de resgatar a sua imagem por meio das historinhas familiares, das fotografias, de algum traço de Esteban ou de Blanca. Conheço todos os seus dados, mas não quero sabê-los de segunda mão, e sim recordá-los directamente, vê-los em todos os detalhes diante de mim, assim como vejo agora minha cara no espelho. E não consigo. Sei que os olhos dela eram verdes, mas não consigo sentir-me diante do seu olhar.

Encontro meus filhos muito pouco. Nossos horários nem sempre coincidem, e nossos planos ou nossos interesses, menos ainda. Eles são correctos comigo; mas como, além disso, são terrivelmente reservados, sua correcção sempre parece o mero cumprimento de um dever. Esteban, por exemplo, está sempre se contentando para não discutir minhas opiniões. O que nos separa será a simples distância geracional, ou eu poderia fazer algo mais para me comunicar com eles? Em geral, acho-os mais incrédulos do que desatinados, mais fechados do que eu, quando tinha a mesma idade. Hoje jantamos juntos. Fazia provavelmente uns dois meses que não estávamos todos presentes num jantar familiar. Perguntei, em tom de brincadeira, que acontecimento festejávamos, mas não houve eco. Blanca me olhou e sorriu, como se me quisesse comunicar que compreendia minhas boas intenções, e mais nada. Passei a registar quais eram as escassas interrupções do consagrado silêncio. Jaime disse que a sopa estava insossa. O sal está bem aí, a 10 centímetros da sua mão direita, retrucou Blanca, e acrescentou, ferina: quer que eu lhe passe? A sopa estava insossa. É verdade, mas porque aquilo? Esteban informou que, a partir do próximo semestre, nosso aluguer vai aumentar 80 pesos. Como todos contribuímos, a coisa não é tão grave. Jaime começou a ler o jornal. Acho ofensivo que as pessoas leiam quando comem com a família. Disse isso a ele. Jaime largou o jornal, mas foi o mesmo que se tivesse continuado a ler, porque continuou sisudo, distante. Relatei meu encontro com Vignale, tentando ridicularizá-lo para trazer ao jantar um pouco de animação. Mas Jaime perguntou: quem é esse Vignale? Mario Vignale. Um sujeito meio careca, de bigode? Ele mesmo. Conheço. Bela peça, disse Jaime, é colega de Ferreira. Tremendo achacador. No fundo, agrada-me que Vignale seja uma porcaria, assim não tenho escrúpulos em me livrar dele. Mas Blanca perguntou: com que então, ele se lembrava da mãe? Achei que Jaime ia dizer alguma coisa, creio que moveu os lábios, mas decidiu ficar calado. Sorte dele, acrescentou Blanca, eu não me lembro. Mas eu, sim, disse Esteban.

Como será que ele se lembra? Como eu, com recordações de recordações, ou directamente, como quem vê o próprio rosto no espelho? Será possível que ele, que só tinha 4 anos, possua a imagem, e que a mim, em contraposição, a mim, que tenho registadas tantas noites, tantas noites, tantas noites, não reste nada? Fazíamos amor no escuro. Talvez seja por isso. Seguramente, é por isso. Tenho uma memória táctil dessas noites, e esta, sim, é directa. Mas e o dia? Durante o dia, não estávamos no escuro. Eu chegava do trabalho cansado, cheio de problemas, talvez furioso com a injustiça daquela semana, daquele mês. Às vezes fazíamos contas. Nunca chegava. Talvez olhássemos demais os números, as somas, as sobras, e não tivéssemos tempo de nos olhar. Onde ela estiver, se é que está, que lembrança terá de mim? Afinal, a memória importa alguma coisa? Às vezes me sinto infeliz, só por não saber do que tenho saudade, murmurou Blanca, enquanto repartia os pêssegos em calda. Couberam três e meio para cada um.

Hoje entraram para o escritório sete empregados novos: quatro homens e três mulheres. Tinham umas esplêndidas caras de susto, e de vez em quando dirigiam aos veteranos um olhar de respeitosa inveja. A mim, couberam dois pirralhos (um de 18 e outro de 22) e uma moça de 24 anos. Portanto, agora sou totalmente chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob minhas ordens. Pela primeira vez, uma mulher. Sempre desconfiei delas em matéria de números. Além disso, outro inconveniente: durante os dias do período menstrual, e até mesmo nos que os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e se normalmente já forem atarantadas, tornam-se completamente imbecis. Esses novos que entraram não parecem ruins. O de 18 anos é o que menos me agrada. Tem um rosto sem força, delicado, e um olhar fugidio e ao mesmo tempo adulador. O outro é um eterno descabelado, mas tem um aspecto simpático e (ao menos por enquanto) uma evidente vontade de trabalhar. A mocinha não parece ter tanta vontade, mas pelo menos compreende o que a gente explica; além disso, tem testa larga e boca grande, dois traços que, em geral, me causam boa impressão. Chamam-se Alfredo Santini, Rodolfo Sierra e Laura Avellaneda. Vou deixar com eles os livros de mercadorias e com ela o Auxiliar de Resultados». In Mario Bennedetti, A Trégua, Cavalo de Ferro, 2015, ISBN 978-989-623-048-7.

Cortesia de ECdeFerro/JDACT

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