domingo, 11 de abril de 2021

Beije-me onde o Sol não Alcança. Mary del Priore. «Enviarei, sem remetente, uma poesia ao Pirahí. Trabalharei as quadras ao gosto do tempo, misturando fanatismos de amor, palpites de morte, melancolia de Outono…»

 

Cortesia de wikipedia e jdact

Piraí, sede de O Pirahí. Março de 1893

«(…) Deus levou Nicota numa tarde de Verão. Seu rosto expressava tristeza serena. Ela morreu com essa tristeza. Morreu quietamente, como se cala um passarinho ao fim do seu bem voado dia. Depois que acabou o estertor e o corpo se esvaziou, dizem que remoçou: linda, novamente. Deus seja louvado por essa graça. O próprio cura, tio da moça, não queria acreditar, pois ungiu-a hesitante, como se ungisse a própria mãe. No dia em que o enterro saiu, a condessa adormecida num caixão com alças de bronze, a família, os amigos, os ex-escravos, criados e empregados da fazenda, todos faziam as mesmas perguntas. Porque nunca teve descendência, quando tantos sobrinhos, crianças e jovens seguiam o cortejo? Porque se casou com o estrangeiro, quando irmãos e irmãs se uniram aos primos e tios como era tradição na terra? Alguém lhe viu a alma sair do corpo? Deixou qualquer sinal? Para mim, Nicota foi só qualidade. Ninguém lhe pronunciava o nome sem emoção. Alegre, respeitada, caridosa, seu riso nunca foi licença. Todas as bocas mastigaram orações por sua alma. O cortejo entoou O Senhor amado. Cantei junto.

Dor tranquila e sombria a do viúvo. Afinal, a morte era a morte. O conde russo, por sua vez, arrastava uma reputação sulfurosa. Rumores o cercavam. Não faltava curiosidade sobre o prestígio do seu título, sua liberalidade, as intrigantes viagens a Paris, de onde voltava para sacudir letargias. Caloroso, ele agradava, seduzia. Acenando com a ideia de um grande amor, tirou Nicota da gaiola. Mas foi só para jogá-la na tristeza, comentava o povo no cortejo do enterro. Serei eu a fazer o necrológio para o jornal de Piraí. O que contar? Queria dizer que essa foi a história de uma esposa infeliz, de um marido infiel e de sua amante. De infidelidades feitas de feridas minúsculas, de humilhações, de remorsos e solidão. Do uso e abuso de máscaras. Infidelidades feitas não só de deslealdade amorosa, mas de mentiras. Mentiras sobre quem se é. Mentiras sobre de quem se gosta. As dele, as dela. Mas na pedra do túmulo vai estar escrito: Tributo do amor conjugal. Essa é uma história triste, sobre a qual todos acham que sabem muito. E nada ou quase nada conhecem. Vontade de embebedar-me. Brindar à morte, talvez, murmurando: Celebrarei na minha flauta amena, teus olhos, morena. Hei-de procurar em Musset ou Byron algumas linhas que falem da dor da perda. Perda de um coração de ouro. Enviarei, sem remetente, uma poesia ao Pirahí. Trabalharei as quadras ao gosto do tempo, misturando fanatismos de amor, palpites de morte, melancolia de Outono e tristezas da separação. Feita de versos gastos, será minha homenagem anónima:

É chegado o momento de partir

Dor e luto se apossam do meu ser

Longe de ti, ó anjo feiticeiro

A vida é treva, não posso viver.

A bordo do Équateur, Novembro de 1864

Chère Maman

Estou saudoso. Lembro-me de lhe dar o braço até à rua Daru. No frio Inverno, os oito braços das cruzes apoiados em meias-luas, as flechas e os bulbos dourados da igreja de São Alexandre Nevski guiavam o nosso caminho. Reunidos com a mais profunda veneração na cela do seu guia espiritual, fomos abençoados pelo homenzinho magro de olhos brilhantes. À frente de numerosos ícones de revestimento cintilante, uma Virgem de grandes dimensões e reproduções de pintores italianos, se prosternou aos seus pés, cabeça no chão, à russa. Que grande santo esse starets! Aliviou minha alma e lhe beijar as mãos descarnadas. Maman, reze por mim e para que essa viagem me traga o tesouro que procuro. Graças à conjunção de vapor e vela, o Équateur entra, rapidamente, nas águas do Brasil. O Cruzeiro do Sul cintila entre farrapos de nuvens. Respiro o cheiro das matas tropicais. É diferente do odor das nossas florestas de pinheiros, da imensidão dos campos de feno cobertos de um véu azul que parece preso ao céu por pregos prateados. Longe da agitação de Paris, mergulho no silêncio das noites no Hemisfério Sul. Silêncio só quebrado pelo riso de Vera e Luís César na cabine ao lado. Ah, os recém-casados! Tranquilize-se. O diplomata brasileiro faz minha irmã feliz!» In Mary del Priore, Beije-me onde o Sol não Alcança, 2015, Editora Planeta, 2015, ISBN 978-854-220-588-6.

Cortesia de EPlaneta/JDACT

JDACT, Mary del Priore, Literatura, Narrativa,