segunda-feira, 29 de abril de 2024

Maria Velho da Costa. Cravo.«De ferros, de burel, estamenha e lã cardada, de patas e pés nus só enrolados, traça da mão e cuspo em tudo e tudo, eu vi o punho cheio a pôr-se em terra, a inteirar-se»

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Crónica dos idos

«E eu vi deles a primeira dinastia. Tinha-se muito recta pela madrugada e velava. Os céus estavam cerrados alto e os ginetes faziam outras pequenas nuvens pelas narinas, fora do horto da ermida, casqueando manso nos penedos seu sono de pé, enquanto eles lá dentro velavam seu sagrar-se à desmesura, a sempre nova guerra.

Virgens, o olho à escuta e raiado de sangue, os tão novos passavam a mão nos peitos luzidos de orvalho, ainda só disso, e esperavam, montariavam golpes lá no rosar das nuvens do clarear, estremeciam no dentro do dentro da sua novidão, Passavam a água em barros e pão ázimo, queriam suster e viam e ouviam, sua língua de argila, os sons de muco e chão. Vos digo claramente que não sabiam que nada, era só um mais ser, a princesia, ir descendo nas terras um coro de ser eu.

De ferros, de burel, estamenha e lã cardada, de patas e pés nus só enrolados, traça da mão e cuspo em tudo e tudo, eu vi o punho cheio a pôr-se em terra, a inteirar-se. Ninguém não era irmão e era cedo. Como do cru ao cru, todo o ar era tenro. Bestas e gente tinham cheiro, gemia um só vagido e era a língua, o rude afago dela. Cera silvestre neles, bosta quente, coalhado leite, dedos sem escrita, mãos de derramar. Todos eram primeiros, grossos, unos.

Mais vi: as casas, os caminhos e as fontes, o gado são, entrarem pelas barcas ao meio-dia. Vi os segundos como corvos e tudo tendo a medo, conservando. Tinham seus paços postos sobre estacas e em baixo eram o ouro fosco e a pimenta grumosa, restos de maresia, o agougar dos caranguejos. Vi-os de negro e chapelão maldizerem as águas e os ares, montados sobre as mais altas pontas de terra, espumando ao mar as suas próprias espumas. Vi as mulheres, a enegrecer de trapos o todo corpo delas, gementes e chorantes em nome de uns nomes ou de outros.

E vi-os engodar a própria morte, tecer vaidades dela. E' ouvi a antiga renegada faladando vozes de mando por cima desses brados altos. Até que se deitaram pelo chão, pelas terras todas e ficaram à escuta do seu ronco. Até que se deitaram para as águas cuspindo os dentes e mordendo as redes. Vi-os erguerem-se e só comerem estevas e roerem as mãos até aos punhos para de novo ter nome.

Mais vi as armas que empunhavam, os chuços e ancinhos para sempre. Vi-os ir de uma a outra casa, sempre sagradas santas, a demandar caminhos, sem ninguém que ficasse em nome deles. Puseram-se então a triturar o membro a todos os meninos, para que não fossem mais Por sobre a terra.» In Maria Velho da Costa, Cravo, 1976, Morais Editores, 2024, Porto Editora, Assírio & Alvim, ISBN 979-972-572-579-5.

Cortesia de A&Alvim/JDACT

JDACT, Maria Velho da Costa, Liberdade, 25 de Abril, Narrativa,