quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Diário de Viagem que fez do Reino de Portugal a Goa. Século XVIII. António José Noronha. «… mas de um leitor muito especial que é lícito identificar com o poderoso Marquês de Pombal, a pessoa que teve um papel decisivo na solução do ergástulo a que D. António José Noronha tinha sido condenado por força da intriga política goesa»

Plano e perspectiva do sítio da Praça do Piro, 1768
Cortesia de foriente

Diário dos sucessos da viagem que fez do Reino de Portugal para a cidade de Goa, principiada aos 21 de Abril de 1773
Acerca do género literário
«Ora, também o nosso texto se revela como um conjunto híbrido em que convivem modalidades narrativas e constantes temáticas peculiares do «diário de bordo», de tipo técnico, da «jornada», do «jornal íntimo», do memorial, da autobiografia, da epístola e do documento de carácter diplomático ou político. A intencionalidade que origina e guia a escrita é, todavia, no caso do “Diário” prevalentemente memorialística e autobiográfica, já que o texto, apesar de surgir numa dimensão de documento técnico, de «diário de bordo» ou de «diário de navegação» e, de certa maneira, como construção literária estruturada em forma de ‘exemplum’ ou de ‘ex voto’, aparece profundamente marcado pela dimensão de registo testemunho de uma determinada fase da vida do Autor e como possível instrumento político. Esta direcção interpretativa, sugerida aliás pelo título – “Diário dos sucessos da viagem que fez do Reino de Portugal para cidade de Goa Dom António José de Noronha Bispo de Halicarnasse [...] - é identificável logo nas primeiras páginas centradas sobretudo em questões de tipo pessoal, e revela-se progressivamente confirmada pelo espaço narrativo reservado ao «eu», posto constantemente em primeiro plano como protagonista ou como objecto sobre o qual se reflectem os acontecimentos. A preponderância da componente autobiográfica é, no caso específico, ulteriormente justificada e intensificada pela existência de um destinatário, não ocasional, mas preestabelecido.
Como se viu, na carta dirigida por D. António José de Noronha poucos dias depois do regresso a Goa aos «Senhores do Ministério», mas destinada ao Marquês de Pombal, faz-se referência a uma «narração da minha viagem», sucessivamente definida como «o meu jornal», enviado juntamente com aquela carta e com outros documentos para Lisboa. O «jornal», devia narrar ao Marquês de Pombal a viagem empreendida e, exactamente por isso, o Autor só dedica o espaço da carta a questões de carácter pessoal, diplomático e económico, e à apresentação dos acontecimentos posteriores à sua chegada a Goa.

Cortesia de viatormunditudonavia

Esta indicação externa levanta duas hipóteses quanto ao momento em que foi decidido o destinatário da obra:
  • ou é só depois do regresso a Goa que o Autor determina enviar o diário ao Marquês de Pombal;
  • ou já durante a redacção da sua obra D. António José estava consciente de que o seu «diário», se destinava não só a uma leitura pública mas a uma leitura política que podia condicionar profundamente a própria existência e a possibilidade de conseguir uma completa reabilitação no quadro da difícil sociedade goesa.
Na primeira hipótese tratar-se-ia de um documento desligado de qualquer condicionamento público, mental ou formal porque surgido numa dimensão íntima, representando apenas uma espécie de catarse frente a uma situação em que o Autor tem que enfrentar uma experiência traumática e um destino que só em poucas circunstâncias lhe deixa possibilidades concretas de acção e de decisão.
A presença de uma escrita desenvolvida num regime íntimo, alheio e uma dimensão pública, poderia atribuir validade à primeira hipótese mas, apesar desta impressão, a leitura atenta do ‘Diário’ revela que a elaboração do texto esteve condicionada pela Presença de um futuro leitor. Com efeito, por vezes o Autor faz no seu texto referência explícita à existência deste leitor:
  • “Conferindo o nosso piloto o seo ponto com o do capitão da cruveita, achou uma total deferença porque em lugar de estarmos perto da terra, como assegurava o primeiro [piloto] e queria apostar, achamos-nos três graos e 53 minutos fora da terra de Seylão, no Golfo de Bengala e não de manar como os nossos dous, primeiro e segundo, pilotos asseguravão e tanto assim que aqueles dizião estarmos perto da terra e aquela, a cruveira, ia para Cochim, fazendo entender que navegava no golfo de manar. Julguem agora o[s] que lerem esta jornada que té os principaes pilotos [que] tínhamos, dizião com justíssima razão que ou erão ignorantes ou maliciosos, deste havia mais pelas antecedências, e conjurados ambos com os da sua parcelidade pertendião desencaminhar os rumos do Capitão: a nós todos prejuízo grande com a demora, sem falar no que terá Cantofer”.

Cortesia de enwikipedia

Ou ainda, sugerindo também a possibilidade de uma leitura em chave política do ‘Diário’:
  • À vista deste procedimento de Narbá que derão agora os que me ouvirão discorrer sobre o ser eleito não só admitirem no real serviço mas também protegê-lo com prémios avultados, derão os senhores ministros do Estado pois me fizerão a honra de ouvir e ler o meo discurso e nesta e nas outras matérias conservantes os cabos dos partidos e muitas questões de Goa que lanceto formava daquele que se achava em campo a favor daqueles».
No caso desta obra de D. António José, como no das outras produzidas durante a prisão não se trata, porém, de um destinatário qualquer mas de um leitor muito especial que é lícito identificar com o poderoso Marquês de Pombal, a pessoa que teve um papel decisivo na solução do ergástulo a que D. António José Noronha tinha sido condenado por força da intriga política goesa. O facto de termos conseguido estabelecer que o Marquês de Pombal era o destinatário escolhido já no momento da elaboração da obra oferece-nos a possibilidade de efectuar uma leitura crítica mais correcta do texto e uma avaliação mais objectiva dos núcleos narrativos de carácter pessoal e político, com toda a probabilidade inseridos deliberadamente pelo Autor no seu «diário de bordo», chamado, emblematicamente, pelo Autor «o meu jornal». In D. António José de Noronha, Diário da Viagem, Edição e Introdução de Carmen Radulet, Fundação Oriente, Biblioteca Nacional, 1995, ISBN 972-9440-51-4, ISBN 972-9440-50-6.

Continua
Cortesia da Fundação Oriente/JDACT