segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

José de Encarnação. Das Guerras Peninsulares e das Epígrafes Romanas: «Entretido com as novidades das diferentes cidades portuguesas, a viagem até Lisboa, que devia ser o centro de operações nos três anos seguintes, atrasou-se mais do que a conta. De facto, Cornide e os seus companheiros demoraram-se vários dias em Vila Viçosa, Évora e, sobretudo, em Beja…»

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José Andrés Cornide de Folgueira e as Inscrições de Ammaia (Conventus Pacensis)
«O Duque de Frías fora precisamente aquele que, a 9 de Março de 1801, quando Cornide e os seus companheiros tiveram que atravessar prematuramente a fronteira entre Portugal e Espanha no início das tensões militares, lhes facilitou a passagem do equipamento e os acolheu em «Badajoz, aonde chegámos às cinco e achámos socorro para a nossa fome na generosidade do Duque de Frías, que nos mandou dar de comer assim que chegámos à sua casa, depois de nos ter apresentado ao general».

Quer dizer: durante a viagem por Portugal, Cornide havia espiado as estruturas defensivas militares portuguesas e fundamentou o seu trabalho no interesse pelas antiguidades e na fama que o precedia como um dos intelectuais do seu tempo. Não só isso! Também mantivera correspondência com o Duque de Frías sobre a possível invasão de Portugal, escassos meses antes de visitar S. Salvador de Aramenha, e tivera o sangue frio de viajar montado em machos, por todo o território, com os desenhos das fortificações portuguesas que ora conhecemos. Apesar disso, nesta e naquela localidade, grande ou pequena, entrava em contacto com as autoridades, mostrava o seu interesse pelas antiguidades e delas recebia os convenientes passaportes que lhe permitiam circular livremente por todo o país. Não estranhará, pois, que, nestas circunstâncias, quando se passavam alguns meses sem notícias suas, nos companheiros de Madrid começasse a despontar um certo nervosismo, como sabemos por algumas cartas que nos chegaram e que seria prolixo ajuntar aqui.
Essa tarefa de espionagem explica as pormenorizadas descrições dos sistemas defensivos, de cada guarnição, as avaliações da capacidade de defesa das diferentes praças e, obviamente, a pasta com planos de instalações defensivas com que chegou a Madrid três anos depois. Isso faz com que o seu relato seja, em certos momentos, similar ao do general Alexander Dickson, pois ambos uniam ao seu interesse e curiosidade por tudo o que os rodeava, a necessária atenção pela natureza de um território como actores de um conflito.

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J. A. Cornide entrou em Portugal a 11 de Novembro de 1798, acompanhado pelo almeriense Narciso Heredia, que, com 22 anos, já era Catedrático de Filosofia e Matemáticas na Universidade de Granada e que seria, pouco depois, Conde de Ofalia; por Manuel Carrillo de Albornoz e pelo desenhador Melchor de Prado, natural de Santiago de Compostela e Académico de Mérito da Real Academia de San Fernando:
  • «Aqueles para me ajudarem a copiar o Códice das Partidas existente no arquivo da Chancelaria de Portugal existente no Mosteiro de São Bento de Lisboa, e este para fazer os desenhos de antiguidades e inscrições», tal como escreve Cornide para justificar a comitiva. Com eles seguiam alguns criados e bem nutrida equipagem.

Entretido com as novidades das diferentes cidades portuguesas, a viagem até Lisboa, que devia ser o centro de operações nos três anos seguintes, atrasou-se mais do que a conta. De facto, Cornide e os seus companheiros demoraram-se vários dias em Vila Viçosa, Évora e, sobretudo, em Beja, aonde chegaram a 27 de Novembro e onde Cornide fez amizade com o bispo Manuel do Cenáculo Vilas-Boas e pôde descrever prolixamente a sua colecção. Após uma semana em Beja, saíram desta cidade «na terça-feira, 4 de Dezembro, dirigindo-nos para Lisboa pelo caminho de Santiago do Escoural, por não ser praticável o de Alcácer do Sal por causa das chuvas». A 8 de Dezembro de 1798, a comitiva de Cornide entrava em Lisboa, na barcaça que fazia a travessia desde Aldeia Galega. À sua frente quedavam dois anos e meio de viagens por Portugal, que nos legariam um dos sumários mais copiosos das antiguidades deste país.
Durante o Verão de 1800, José Andrés Cornide dedicou-se à exploração do “Alentejo Boreal” ou, mais exactamente, a comprovar as notícias que conhecia por Resende sobre o Alentejo português. O seu diário, minucioso em extremo, indica que o périplo começou em Lisboa a 22 de Julho:
  • «Ao mesmo tempo que empreendi esta viagem para conferir algumas inscrições e citações de André de Resende e outros antiquários portugueses, quis trazer em minha companhia os meus dois companheiros D. Narciso Heredia e D. Manuel Carrillo, para que vissem Setúbal, Tróia e a Arrábida, e com igual objectivo se ofereceram para fazer connosco a viagem o irlandês J. Murphy, autor da “Viagem de Portugal e do Estado do Mesmo Reino”, impresso em seu nome, assim como da “Descrição do Templo da Batalha”, e o comerciante de Madrid D. Joseph Escola, que vive na nossa pousada. Saímos, pois, de Lisboa na segunda-feira, 22 de Julho, comemos na Moita e fomos dormir a Setúbal, na pousada de um italiano chamado Baptista, casado com uma irlandesa, onde se serve muito bem a 30 reais por pessoa; a 23, passámos a Tróia; a 24, à Arrábida; a 25, dia do nosso padroeiro São Tiago, descansámos e, de tarde, vimos a Feira de Setúbal e estivemos numa festa de touros, precedida por uma marcha ou mogiganga ao ar livre, das de Lisboa; a 26, regressaram àquela cidade e, como eu já tinha feito o caminho de Alcácer do Sal por terra, quis agora fazê-lo em parte por água e reconhecer, ao mesmo tempo, o sítio do Pinheiro, antiga possessão do Duque de Aveiro e hoje agregada à Casa do Infantado...».

Cortesia de ecolibri e jdact

Cornide começara a viagem com uma nutrida companhia; contudo, a partir de Setúbal, prosseguiu, a 26 de Julho, apenas com os criados e, quiçá, com algum familiar, como dá a entender a dado passo, na intenção de se dedicar directamente à observação das antiguidades, prescindindo doravante dos divertimentos e das excursões lisboetas dos seus companheiros.
No palácio ou Casa do Pinheiro, Cornide procurou, sem êxito, como não podia deixar de ser, a inscrição CIL II, incluída por Hübner entre as falsificações de Resende; nessa mesma tarde, seguiu caminho para ir dormir em Montenovo [Monte Novo], «em casa do feitor do meu amigo Bertrand, o livreiro de Lisboa, e comer no dia seguinte em Alcázar [Alcácer], em cuja matriz que está no castelo, copiei a inscrição de L. Porcio Himero, da tribo Galériar, referida por Resende».
A viagem continuou, a 27 de Julho, por Porto do Rei e, a 28, por S. Mamede do Sado e Sta. Margarida do Sado, onde Resende localizara duas epígrafes romanas; depois de ter dormido em Porto Carvalho, Cornide seguiu, no dia 29, para o Torrão e Viana de Alvito.

NOTA: No Torrão, visitou Cornide a ermida dos Santos Justo e Pastor, tratando de comprovar os dados de Resende. Numa folha inserida no diário, anota Cornide algumas precisões epigráficas: “Ni en la capilla de San Justo y Pastor ni en Beja se conserva la inscipción que trae el mismo Resende pág. 290 dedicada a los mismos santos, que dice así [texto de Resende de IHC l]. En el mismo templo había ono cipo de letra elegantísima que decía [texto de CIL II 37 tomado de Resende]. Añade, finalmente Resende que habia otros tres cipos metidos en la pared y cuyas letríts no son legibles por estar vuebos hacia dentro. Otra inscripción dice que había menos elegante y en un cipo más pequeño; pero lo tengo mis dudas sobre su legitimidad [texto de CIL II 5 tomado de Resende]. Inscripción leída por Resende en un templo antiguo dedicado a Júpiter a 2 millas del lugar de Terraom [Torrão] en el Alentejo pág. 290 [texto de CIL II 32]. Dice Resende que de un lado tenía esculpido un árbol que le era desconocido y del otro un águila con las alas extendidas en acción de volar, y en las garras un rayo de tres puntas (el rayo de Júpiter). Este cipo se conserava en el Museo de Beja, a donde le copié reconocí que el árbol es una encina, árbol dedicado a Júpiter”».

No dia 30, por Vidigueira seguiu até Marmelar; a 31, pernoitou em Moura, a que dedica bastante atenção no texto, e, a 1 de Agosto, chegou, à última hora, à vila de Mourão. Dali, por Olivença (2 de Agosto) e Juromenha (3 de Agosto), chegou a Vila Viçosa no dia 4, onde se ocupou a verificar novamente os dados de Resende e seguiu para Estremoz. A viagem prosseguiu, no dia 5, por Fronteira até Alter do Chão e Alter Pedroso, onde identificou, na capela de S. Bento, a inscrição CIL II 169; pernoitou em Portalegre, dedicou dois dias a reconhecer a cidade e os seus monumentos, e, a 8 de Agosto de 1800, José Andrés Cornide fazia a sua entrada em S. Salvador de Aramenha com a intenção de verificar a existência de antiguidades nesta localidade, «para reconhecer o sítio e vestígios da antiga Meidubriga».

A parte do diário dedicada a S. Salvador de Aramenha, que motiva estas páginas, contém a descrição das epígrafes que Cornide viu na chamada "Quinta do Deão" ou "Horta do Deão", que sabemos, pelo diário, que é a «horta e casa do deão de Portalegre e outras terras de sua pertença». In Juan Manuel Abascal, Universidad de Alicante, Rosario Cebrián, Parque Arqueológico de Segóbriga, José d’Encarnação, Universidade de Coimbra, Marvão e Ammaia ao tempo das Guerras Peninsulares, IBN MARUAN, 2009, Edições Colibri, Câmara Municipal de Marvão, ISBN 978-972-772-876-3.

Cortesia de E. Colibri/CM de Marvão/JDACT