sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

História e Monumentos de Santarém. Zeferino Sarmento. «E saindo deste jardim - as Portas do Sol - encontramos à direita a igreja que foi da Alcáçova, com sucessivas reconstruções e que nos evoca ainda a entrada do primeiro rei, abrindo passagem a golpes de montante, entre a mourama, aos cristãos»

(1893-1968)
Santarém
Cortesia de cms

«Ainda que escudado no muito amor a Santarém, que poderei dizer duma região que tanto carinho mereceu a escritores de alto valor e nomeada, tais como Frei Luís de Sousa, Padre Inácio da Piedade e Vasconcelos, Alexandre Herculano, Fialho de Almeida, Ramalho Ortigão, Almeida Garrett e tantos outros.
  • Que Santarém foi tomada por D. Afonso Henriques em 1147?
  • Que do alto dos seus muros desmantelados se desfrutam lindos horizontes?
  • Que é recheada de monumentos, de cujo valor arqueológico e arquitectónico ninguém duvida?
Sabem tudo isto e sabem--no melhor do que eu. O que não conhecem são os detalhes e a alma da cidade scalabitana. Elevada no cume dum altaneiro monte, banha-a essa fita prateada do Tejo, que lhe dá encanto e frescura e que tão avaramente recolheu no meio das águas o túmulo da inocente Iria, martirizada junto ao rio Nabão, em Tomar.

Quem entre em Santarém, vindo de Lisboa ou de além Tejo, pelo lado de Alpiarça ou de Almeirim, ou ainda de Rio Maior ou Pernes, notará o viçoso da vegetação, como moldura de velho carvalho a enquadrar a nobre cidade. E dentro dela, o visitante não saberá se entreter a vista com as pedras dos velhos monumentos, se desfrutar dos miradouros, a paisagem.
Há em Santarém um ponto, cujo nome se repercute por todo Portugal e causa até admiração dos estrangeiros que o visitam, o Parque Pedro Alvares, Cabral - as Portas do Sol - sala de visitas, como é conhecido pelos Santarenos.
O monte avança sobre o Tejo e velhas muralhas de reconstrução afonsina, algumas delas coroadas de ameias, limitam-no na periferia, fechando assim o lugar, outrora ocupado pela Alcáçova. Dos torreões e baluartes a vista alonga-se pela planície fértil e verdejante, alegrada pelo casario branco de Chamusca, Almeirim e Alpiarça.

S. João de Alporão
Cortesia de cms

E ao reparar nesta última vila, descobre-se entre um maciço de árvores a casa solarenga dos «Patudos», residência do artista, que foi José Relvas e que com tanto carinho coleccionou preciosidades de museu, numa variedade que causa assombro a quem visita esta acolhedora mansão da arte.
Merece a pena atravessar a ponte e seguir mais além onze quilómetros para admirar as porcelanas, as pinturas, o mobiliário e as tapeçarias. Adornam o mobiliário exemplares interessantíssimos de Sèvres e de Saxe, da fábrica do Rato e da Bica do Sapato e paredes há, revestidas de azulejos hispano-árabes. Os muros do jardim são cobertos em grande parte por azulejos do convento de Santo António da Chamusca e enquadram o arco sólio do túmulo de D. Aleixo de Meneses.
Quarenta tapetes de Arraiolos constituem a grande colecção e com eles, paramentos religiosos de avultado valor artístico. Cada sala é um museu de pintura. Das paredes pendem tábuas de Jorge Afonso e quadros de Domingos Sequeira, Ferreira Chaves, Anunciação, Silva Porto, Malhoa, Columbano, António Ramalho, Alfredo Keil, salgado, João Vaz, Carlos Reis, António Saúde, Sousa Pinto e de tantos outros de alto merecimento e ainda aguarelas de Roque Gameiro, Columbano, Alves de Sá e Alberto Sousa. Entre tantas obras-primas, há ainda que admirar esculturas de Machado de Castro, Soares dos Reis, Teixeira Lopes, Costa Mota, etc.

E depois deste recolhimento artístico, em que o espírito se recreou perante tão lindos exemplares, devereis regressar por Almeirim, terra que teve palácio real, do qual nada resta, e pena é, porque seria por certo de linhas interessantes, a avaliar por outras edificações espalhadas pelo país da época de D. João I e portanto coevas daquela. A recordar as imediações do paço real, lê-se nas esquinas de duas artérias, rua dos Arreios e rua das Cavalariças.
Somente a toponímia se mantém!
E nesta vasta de Santarém, Alpiarça, Almeirim, alongareis a vista no largo mar de cepas, dum verde-claro. No Outono, os bagos aloirados das uvas são recolhidos nos cestos de vindima por mulheres de airoso porte, elegantes e esculturais, de indumentária característica. E é ver então, a longa fila de carros, cortando as estradas, transportando dentro de grandes dornas os cachos de uva, que no lagar, os homens de camisa sempre alva, pisam e apertam em prensas, até sair da bica o delicioso néctar, que vai depois encher as grandes adegas regionais.

Interior de S. João de Alporão
Cortesia de cms

Mas, eu estava nas Portas do Sol e sem dar por isso, fui passear para a campina. Voltarei ao ponto de partida. Deste miradouro, desfruta-se ainda no Inverno o vasto lençol de água que inunda o campo, submergindo plantações e estradas, até atingir o sopé da serra de Almeirim, deixando-nos ver somente as franjas de algumas árvores e os tectos das barracas dos guardadores de gado. Singram então os barquitos o vasto campo de prata, prestando socorro a um ou outro campino que, esperançado de a cheia não subir mais, se deixou ficar ao abrigo da sua fé; ou salva acolá, uma cabeça de gado, que não fora recolhida a tempo.
Das Portas do Sol divisa-se claramente a povoação de Alfange, campo da tragédia de 1491. Foi na cabana de Álvaro Pires que expirou o infante D. Afonso, depois de correr o páreo com D. João de Meneses e em quem D. João II punha todas as suas esperanças. Foi o maior golpe sofrido pelo grande rei D. João II e foi daquela cabana de pescador, que saiu a divisa da rainha D. Leonor, o camaroeiro, a divisa dessa mulher que, estendida por todo o país, foi a rede de malhas apertadas, de bem-fazer, as misericórdias.
E saindo deste jardim - as Portas do Sol - encontramos à direita a igreja que foi da Alcáçova, com sucessivas reconstruções e que nos evoca ainda a entrada do primeiro rei, abrindo passagem a golpes de montante, entre a mourama, aos cristãos.
Mais além, o magnífico templo românico-ogival, São João de Alporão, utilizado para museu arqueológico desde 1876.
Os muros laterais desta obra de silharia elevam-se sobre repisos, coroados no alto, abaixo da cimalha, por uma fiada de arcaturas, de aresta chanfrada, orlada de pérolas. Três frestas, por lado, de arregace duplo, avançando para dentro em forma de janela com arco de meio ponto, dão luz ao monumento. A abside é poligonal, reforçada por antas nos ângulos, excepto num, abrindo-se nos vãos quatro frestas de visagem igual no interior e exterior, abaixo das quais corre uma imposta em bisel. O pórtico principal, é constituído por quatro colunelos por lado, com capitéis de decoração vegetal e ábacos corridos, sustentando cinco arquivoltas lisas em reentrantes de pleno cintro.

A dois terços da fachada, abre-se a rosácea de duplo arregace, composta por quatro círculos concêntricos, circuitado o primeiro por um listel de miosótis; irradiando do extradorso de anel polilobado no interior, colunelos, que vão apoiar alternadamente nos arquinhos de um anel análogo, que as arquivoltas circundam». In Palestra de Zeferino Sarmento, História e Monumentos de Santarém, Câmara Municipal de Santarém, 1993, Alto patrocínio do I. do Património Arquitectónico e Arqueológico, ISBN 972-95782-4-9.

Cortesia de CM de Santarém/JDACT