sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Diário de Viagem que fez do Reino de Portugal a Goa. Século XVIII. António José Noronha. «O ‘status’ social do Autor, o seu título de Bispo e o facto de ter tido outras experiências de navegação na mesma rota, […] condicionam a escrita do “Diário” também no que diz respeito à componente de 'diário de bordo', mais marcadamente técnico»

Plano e perspectiva do sítio da Praça do Piro, 1768
Cortesia de foriente

Linhas de leitura crítica
“Diário de bordo”
«O “Diário” de D. António José de Noronha descreve uma das numerosas viagens que ainda no século XVIII os navios portugueses, individualmente ou integrados em armadas, empreendiam entre Lisboa e Goa, na chamada «carreira da Índia». Como aventámos já, o “Diário dos sucessos da viagem que fez do Reino de Portugal para a cidade de Goa, Dom António José de Noronha, Bispo de Halicarnasse” não é um «diário de bordo» técnico mas mau grado esta característica, o Autor insere no seu texto um elevado número de elementos capazes de delinear com alguma aproximação a rota, de indicar os problemas específicos da navegação no Atlântico e no Índico, a situação do navio, as relações que marcam a mini--sociedade embarcada, a convivência que se estabelece entre equipagem e passageiros, entre equipagem e mundo mercantil terrestre, etc.

Apesar de Francisco Contente Domingues dedicar neste volume um estudo pormenorizado aos problemas mais marcadamente técnicos presentes no “Diário”, não queremos deixar de, também, nos debruçar sobre alguns aspectos de validade mais geral relacionados com a isotopia «diário de bordo» identificável no texto de D. António José.

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O “Diário” começa no dia 20 de Abril, data em que o Autor, já embarcado, recebe as visitas, nas quais se inclui a do Bispo de Beja, amigo e defensor do bispo António José durante o período passado no ergástulo do Limoeiro em Lisboa, na altura em que tentava conseguir o valimento e o reconhecimento dos direitos perdidos. A data que segue é a de 25 de Abril quando o navio faz vela para a Índia. Entre 25 de Abril e 5 de Junho, data em que o ‘Mariana Vitória’ muda a rota para a Baía de Todos-os-Santos, os dados relativos à navegação e à vida a bordo aparecem concentrados em poucas linhas, visando prevalentemente as condições do navio e os reflexos que este problema tinha quanto ao programa de navegação preestabelecido.
O facto de o Autor ter resumido os acontecimentos relativos a mais de um mês de navegação em poucas e sintéticas frases demonstra que o verdadeiro diário, que começa no dia 12 de Junho de 1773 e continua com uma frequência perfeitamente regular até 25 de Janeiro, data da entrada na barra de Goa, foi programaticamente elaborado só e partir dum determinado momento coincidente com a decisão do conselho do navio de efectuar uma escala técnica no porto da Baía de Todos-os-Santos. Esta circunstância indica bastante claramente que o Autor só decidiu proceder à redacção do seu «diário de bordo», quando teve a evidência de que uma navegação que se anunciava pesada mas de rotina normal, estava a transformar-se numa viagem cujas incógnitas se revelavam cada momento mais dramáticas.

No caso de António José Noronha estamos perante um passageiro cujo estatuto social lhe reserva um tratamento especial frente às outras pessoas embarcadas num navio que efectua uma viagem de carácter meramente comercial. O bispo António José, além de contar com uma experiência de vida mais do que variada, não enfrenta pela primeira vez a navegação na 'carreira da Índia'.

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A primeira viagem, Madrasta - Londres fora empreendida, como prisioneiro do almirante Boscawen, em princípios de 1750 numa fragata de guerra inglesa, enquanto que o regresso do porto francês de Lorient para Pondichéry foi efectuado em 1751 na fragata ‘La Colombe’, ostentando desta vez António José a ordem honorífica de «Notre Dame du Mont Carmel et St. Lazare», e o título de Bispo “in partibus infidelium de Halicarnasso”, reconhecimentos conseguidos na Corte de Luís XV de França.
A segunda viagem também não é fruto de uma escolha pessoal mas de circunstâncias adversas: preso e encarcerado em 5 de Dezembro de 1769 no Forte da Aguada em Goa, é enviado com a monção de 1770 para Lisboa. António José de Noronha, depois de ter conseguido a liberdade e o valimento, para voltar à sua cidade natal, embarca no navio “Mariana Vitória”, que efectuava uma viagem de tipo comercial por conta do armador Luís Cantofer.

O ‘status’ social do Autor, o seu título de Bispo e o facto de ter tido outras experiências de navegação na mesma rota, não só em navios portugueses mas também numa fragata inglesa e numa francesa, condicionam a escrita do “Diário” também no que diz respeito à componente de «diário de bordo», mais marcadamente técnico. A posição social coloca António José numa situação privilegiada frente a outros passageiros embarcados no mesmo navio, facilitando a criação de uma relação de amizade com o capitão e permitindo, consequentemente, o acesso a informações detalhadas quanto aos problemas da navegação, à situação do navio, ao governo da equipagem ou às questões que surgem com a administração portuária e com o poder político da Baía.

O Autor não ignorava que a viagem entre Lisboa e Goa, a chamada “carreira da Índia”, se iniciava normalmente no mês de Março ou princípios de Abril para garantir a chegada ao Índico no começo da ‘monção grande’ ou, como alternativa, durante o mês de Setembro, em coordenação com a ‘monção pequena’». In D. António José de Noronha, Diário da Viagem, Edição e Introdução de Carmen Radulet, Fundação Oriente, Biblioteca Nacional, 1995, ISBN 972-9440-51-4, ISBN 972-9440-50-6 (Col.).

Cortesia da Fundação Oriente/JDACT