segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

César de Frias. A Afronta a António Nobre. Parte VI. «Solícita, não despega do seu leito dia e noite. Ninguém, por mais só que se julgue, sofre do seu abandono. Ronda, ronda sempre em redor de nós, em passos furtivos, iguais, imperturbáveis. Insensível às nossas lisonjas, na intenção de desarmá-la, sorri-se com bonomia do nosso infantil estratagema e não se suborna por coisa alguma do mundo»

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O Poeta do "SÓ"
«Filho legítimo do consórcio dum temperamento doente com uma época de decadência, “O Só” tem, portanto, na sua parte restrita, individual, subjectiva, a maior, o valor duma minuciosa auto-biografia, e na sua parte objectiva, geral, humana, o dum símbolo, cristalizando nas suas estrofes as queixas do mal-estar não só da nacionalidade, como do universo, ou, pelo menos, dos povos gastos da civilização europeia mediterrânea, cujas energias exaustivamente se aplicaram durante séculos, em esforços talvez superiores às suas faculdades.
A Morte tornou-se, portanto, o motivo central da sua inspiração. Viu que para ela a gente caminha a cada passo dado na vida. No torvelinho de incertezas em que a consciência do homem se debate, só ela se divisa como certa, como inegável, como isenta dos desequilíbrios que em tudo o mais se constatam. Cogita a ciência em desarmá-la, estala os crânios no interior dos laboratórios no intento de lhe opor uma defesa indestrutível, e, nessa cogitação profunda, nada resolvendo, mais dela se aproxima, definhando ou caindo nas fauces da loucura, sua filha. Procuram-se alegrias, prazeres, horas brandas, e tudo isso apenas com o fito de nos esquecermos dela, de nos iludirmos, julgando que ela nos perdeu a pista. O artifício é vão. A máscara que lhe pomos mal a cobre, e os nossos olhos pávidos não cessam de vê-la, ora longe, a seguir-nos, silenciosa, ora perto, deitada na nossa cama, sentada à mesa na nossa frente, rindo escarninhamente no olhar e nas gargalhadas da mulher amada.

O seu hálito transe-nos. Pelos crepúsculos, aninha-se nos recantos da nossa saleta, coalhados de sombra, e, de quando em quando, numa lúgubre carícia, avança para nós o seu enorme vulto de carne tecida da própria sombra, lança-nos os braços em volta do pescoço é beija-nos num beijo gélido, que nos sacode o corpo num arrepio de passamento. É a mais constante enfermeira de todos os enfermos.
Solícita, não despega do seu leito dia e noite. Ninguém, por mais só que se julgue, sofre do seu abandono. Ronda, ronda sempre em redor de nós, em passos furtivos, iguais, imperturbáveis. Insensível às nossas lisonjas, na intenção de desarmá-la, sorri-se com bonomia do nosso infantil estratagema e não se suborna por coisa alguma do mundo. Se a insultamos, raivosos de nos sabermos impotentes para fugir ao seu jugo, sorri-se ainda, ainda e sempre, certa da sua presa, zombando da nossa raiva inútil, ocultando-se um pouco às vezes, para logo de novo e mais perto nos surgir, rondando, rondando, solene, enorme, feiticeira, hipnótica, dominadora, imperial, divina, cheia do encanto do seu mistério, o maior de todos os mistérios, que tanto nos aterra, para melhor nos seduzir.
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Foi assim que Anto vislumbrou a Morte.
Elegeu-a para sua noiva. Vestiu-lhe o colo das jóias mais preciosas do seu lirismo opulento. Prostrou-se-lhe aos pés na mais incondicional das venerações. Rezou-lhe as jaculatórias mais rendidas. Teceu-lhe os epitalâmios mais ardentes e nupciais. E ninguém, de certo, nenhum poeta dos modernos ou dos antigos tempos, soube dirigir-lhe as frases de possessiva ternura que Anto entoou à sua beira. E, por isso, comovida, enternecida, quiçá pela vez primeira na sua existência de desapiedada c álgida, a Morte escutou-o sem sobranceria, sorriu-lhe com doçura, chamou-o a si amorosamente, abriu-lhe de par em par as portas do seu palácio de mistério e sonho, deitou-o aconchegadamente no seu tálamo negro de mil vezes possuída e, contudo, sempre virgem e sempre casta.
Ficou-nos desse amor desvairado, dessa paixão sem freio, a mais formosa e sentida colectânea de epístolas passionais que a nossa literatura possui:
  • o “Só”.
Ao enformá-la, dela irradiou o Poeta as poesias mais brandas, realizadas nos armistícios das suas dores, doces confissões enamoradas perante uma mulher, suaves desabafos de pequenos afectos, que de modo algum chegaram a constituir traições àquele absorvente cuidado pela sua Maior-Desejada, a Morte. Ali, no “Só”, procurando imprimir-lhe um tom de unidade, enfeixou, pois, os mais altos gritos do seu desespero, do tédio que o torturou enquanto teve de esperar no mundo o dia das suas voluptuosas bodas, da sua ansiedade sôfrega por ir descansar a cabeça no regaço misterioso da sua estranha Bem-Amada. Lê a gente o “Só” e tem a ilusão de que passeia num fúnebre jardim da florações gigantescas e exóticas, em que um sopro ignoto e músico, de dedos subtis, desfere as liras das folhas e das pétalas e faz esvoaçar no espaço o sussurro harmonioso, mas grave e acabrunhante, dum ‘De profundis’.

Depois de longa peregrinação pelo mundo, parte dela buscando a saúde que lhe desertava velozmente do peito, peregrinação de que ficaram muitos marcos nas datas dos seus versos, a 18 de Março de 1900, em Carreiros (Foz do Douro), com trinta e três anos incompletos, levou-o a tísica, disse a medicina. Só ela? Não acredito. Assim como não acredito que, sem essa circunstância da sua doença, António Nobre viesse a realizar uma obra totalmente diferente da que deixou ao nosso culto, isto é, uma obra mais optimista, mais consolada e consoladora, mais ciosa e amante da vida. Embalde me citarão certos trechos das ‘Despedidas’, seu livro póstumo, e desse volume inédito dos ‘Primeiros versos’, assim como o seu plano de obras, razoavelmente longo, encontrado entre os seus papeis particulares, e que atinge meia dúzia de títulos, ou ainda passagens da sua correspondência para amigos, tendo fé na cura e em dias melhores, embalde me citarão tudo isso a abonar a presunção da sua existência literária poder ter tomado outro rumo mais claro e desassombrado de amargura, se viesse a prolongar a vida.

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Não foi apenas a doença que o matou, repito. Ela foi somente o detalhe, a forma, o instrumento. Mais do que ela, matou-o o meio, matou-o o ambiente da época em que nasceu e dentro da qual o destino, só por engano, o pusera. A síntese das suas queixas podia bem ser igual à dum outro inconsolável, Musset, cujo grito maior foi: “Je suis venu trop tard dans un monde trop vieux!”
Matou-o a sua sensibilidade de grande Artista, de extraordinário Poeta. Não podia acomodar a grandeza do seu espírito na estreiteza do mundo. Sentia-se asfixiado, encarcerado. Como todas as inteligências do tempo, rudemente açoitadas por um vento de negativismo, e a este embate abrindo brecha nos alicerces, a sua também sofreu o choque, e disso só resultou amargura, abatimento moral, astenia da vontade. Não repudiou por inteiro as suas crenças, mas não conseguiu manter o espírito impermeável à endosmose tóxica e destruidora». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT