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«A imagem positiva de um rei valoroso e firme não ficou só em Portugal. Foi acolhida também noutras nações da Península Ibérica, e, embora sem tomar a dimensão sobrenatural, passou a orientar a historiografia peninsular anterior a Afonso X, o ‘Sábio’. Apesar da concisão dos textos é o que se depreende da maneira como Afonso Henriques é apresentado por Lucas de Tuy e por Rodrigo de Toledo. O primeiro diz no “Chonicom mundi”:
- Este rei de Portugal, foi filho do conde Henrique e de Teresa, filha do rei Afonso. O dito Afonso, filho do conde Henrique, fez-se chamar a si rei de Portugal. Como foi combativo a valoroso nas armas, ampliou a sua terra, quer povoando-a de novo, quer matando os serracenos.
E o segundo, no livro VII de “De rebus Hispaniae”:
- Este Afonso foi valoroso e persistente nas suas acções. Este foi o primeiro rei que em Portugal se impôs a si mesmo o nome de rei, pois seu pai era conde, e ele próprio era chamado ‘dux’. Conseguiu do papa Eugénio III, a quem entregou o seu reino como tributário, muitos privilégios e indulgências.
Esta imagem permanece ainda, e até com uma carga positiva mais forte, embora também sem a conotação sobrenatural, na “Primeira Crónica General de España” de Afonso X, o ‘Sábio’ e através dela serviu de base para uma espécie de primeira versão da «narrativa canónica».
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O Chefe do Bando Guerreiro
Esta imagem não coincide facilmente com a apresentada pelo texto a que António José Saraiva chamou de “Gesta de Afonso Henriques”, cuja originalidade, época, procedência e coerência foram por ele demonstradas em 1979 e cujas conclusões foram expressamente aceites em várias ocasiões por Lindley Cintra, nomeadamente num artigo publicado dez anos mais tarde.
Antes destes dois autores, a maioria dos medievalistas portugueses consideravam a narrativa apócrifa e tardia, pelo menos num dos seus episódios mais importantes, a violência cometida contra o legado papal e a nomeação do «bispo negro»; o resto do texto não teria praticamente nenhum interesse histórico.
NOTA: Como se sabe, Alexandre Herculano transformou esta «estória» numa das suas “Lendas e Narrativas”, mas não a mencionou sequer na sua “História de Portugal”. Atribuiu-lhe, portanto, um carácter de ficção. O possível fundamento real do episódio foi tratado com todo o rigor por Monica Blocker-Walter, procurando sobretudo compará-lo com a notícia dada pela “Chronica” de Rogério de Hoveden acerca de uma desavença de Afonso Henriques com o legado papal Jacinto.
Estranhamente, nenhum medievalista português antes deles teve o cuidado de procurar uma explicação cabal para a sua origem, para razões da sua preservação ou para o sentido que o seu autor lhe quis dar.
Ora, depois da análise de António José Saraiva e da contribuição de Lindley Cintra não se pode mais ignorar a sua importância. Aquele autor considerou a versão que até nós chegou como a prosificação de um texto poético de carácter jogralesco que constituía uma apologia de Afonso Henriques «e até uma defesa moral e jurídica da sua posição de rei de Portugal». A sua versão primitiva seria originária de Coimbra e dataria de pouco depois do desastre de Badajoz, que é de facto o seu último episódio. Destinar-se-ia, portanto, a explicar o infortúnio do rei e a recordar os seus feitos.
Cortesia de wikipedia
A datação de uma hipotética versão primitiva tão próxima do desastre de Badajoz, levanta bastantes objecções. Parece-me, todavia, que o seu teor exprime uma certa memória de grupo. Tendo esta ideia em conta, aquele grupo que poderia ter procurado perpetuar essa memória é o bando de cavaleiros de Coimbra, que aparecem constantemente na cidade como um grupo coeso desde o princípio do século XII e que foi certamente o que constitui o núcleo do exército de Afonso Henriques. Este grupo existia ainda no fim do século XII, ou seja na mesma cidade e época, em que, por essa altura, o cónego de Santa Cruz escrevia em latim os “Annales domni Alfonsi”. De facto, a ‘Gesta’ chamemos-lhe assim, é certamente produto da inspiração poética leiga para imitar a épica castelhana, com o intuito de exaltar a figura do chefe militar, de explicar os seus reveses e de mostrar que os seus excessos eram temperados pelo grupo dos seus fiéis vassalos. De facto, o herói não é aqui um modelo absoluto, não é de modo algum tocado pelo sobrenatural; é um homem sujeito a cóleras excessivas e a derrotas humilhantes, uma espécie de herói capaz de extraordinárias vitórias mas também sujeito a um destino trágico por causa de uma maldição primordial (35)». In José Mattoso, As Três Faces de Afonso Henriques, Publicação Penélope, Fazer e Desfazer a História, 1992, Dossier, Edições Cosmos, Lisboa.
Cortesia de Edições Cosmos/JDACT