Cortesia de ecolibri
A todos aqueles que resistem à imposição de domínios, à violação de ideias e sentimentos, à perversão de princípios.
Reflexões sobre a escravidão e o tráfico negreiro
«A perspectivação histórica da época moderna implica uma séria reflexão sobre a escravidão nos seus diversos aspectos. Nesta época, o estudo do tráfico negreiro e do homem escravizado não pode ser visto como uma simples alínea da questão económica com reflexos a nível social e assento nos jogos diplomáticos da política internacional. Requer igualmente um estudo do pensamento, da sistematização dos valores em função dos quais adquirem significado as atitudes justificativas ou condenatórias destas práticas. Manifesta-se ainda como um importante estudo de mentalidades, onde é perceptível o peso dos factores psicológicos nas atitudes recíprocas de senhores e escravos e nos comportamentos sociais das populações.
A incorporação destas análises de pensamento e acção nos actuais programas do ensino e o seu desenvolvimento numa dimensão correspondente ao respectivo grau, é, por certo, útil ao nível da aquisição de saberes para uma mais completa e correcta compreensão da realidade humana e sua evolução no processo histórico. Ao investigador cabe a tarefa da reconstituição possível e da compreensão dos factos passados; ao professor compete ainda o trabalho da sua caracterização em esforço de síntese claramente elucidativa e suficientemente sugestiva para futuras pesquisas. Nesta acção, simultaneamente informativa e formativa, o conhecimento histórico assume-se como um instrumento precioso na construção do mundo contemporâneo.
Uma actividade ultramarina em que durante quatro séculos se comerciou e utilizou mão-de-obra escrava não pode deixar de impregnar a história de um país. Sobretudo quando essa mesma relação além-mar catalizou em si uma força propulsora da actividade económica, que influenciou não só a política colonial portuguesa, mas também o desenvolvimento das ideias políticas em geral e deixou sob muitos aspectos marcas significativas no quotidiano. Os escravos, em especial os negros, constituíram o maior auxílio do europeu na colonização moderna.
Foram, no dizer de Oliveira Martins, «o duro preço da exploração da América». Todavia, o seu contributo não se saldou apenas pela força de trabalho, mas igualmente pela acção que desenvolveram, sobretudo nas sociedades coloniais, como veículo cultural.
«Negro escravo». Ilustração de Salvador Ferraz
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Não sendo uma novidade, a presença do escravo na sociedade portuguesa tornou-se uma constante após o início da expansão ultramarina. O encontro com sociedades escravistas tradicionalmente enraizadas no tráfico de escravos, a deslocação do comércio do Mediterrâneo para o Atlântico sem passar pelos interpostos comerciais muçulmanos e italianos, a intensificação da procura e as facilidades de oferta permitiram uma maior exploração deste manancial humano a partir de meados do século XV. A exploração dos territórios coloniais e os baixos índices populacionais levaram a uma intensificação do emprego de mão-de-obra escrava e à deflagração do tráfico negreiro que se abateu como uma praga em especial sobre o continente africano.
Nunca será demais afirmar que os portugueses não iniciaram a escravização do negro, nem lhes cabe a «vergonha» de ter inaugurado o tráfico de escravos. É necessária a reposição dos factos, tanto mais que, de uma forma implícita ou explícita, afirmações deste teor, ainda hoje são formuladas como verdades absolutas em muitas publicações, nomeadamente nos artigos ‘Esclavage’ e ‘Esclavitude’ da La Grande Encyclopédie e da Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana. Aos portugueses deve-se o estabelecimento de um comércio regular, via Atlântico e no qual vieram a participar outras potências coloniais europeias, por vezes com privilégios de exclusividade. Anteriormente, esse comércio era já realizado através do Mediterrâneo, sustentado por guerras e actos de pirataria ou, de um modo organizado, pelo tráfico que as repúblicas italianas estabeleceram a partir dos finais do século XIII.
Dizer que foram os europeus que iniciaram ou introduziram o tráfico e a escravidão em África é tão incorrecto como afirmar que a escravidão moderna é simplesmente a continuação da que já aí existia. O europeu introduziu novidades, sobretudo ao nível dos processos de obtenção dos escravos que, lançando nos circuitos comerciais mercadorias novas e aliciantes, acelerou os mecanismos existentes. Contudo não institucionalizou essas práticas.
Pormenor do monumento a Sá da Bandeira, 1884.
Largo de D. Luís em Lisboa
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É evidente que o tipo de escravatura era diferente, porque diferentes eram os condicionalismos das sociedades europeias e das sociedades africanas. A escravidão em África não se baseava tanto num pressuposto económico, como na Europa e nas sociedades coloniais, mas sim em determinadas relações sociais. O número de escravos estava directamente relacionado com o grau de riqueza e poderio de cada tribo ou senhor. Com a chegada dos europeus, a situação dos escravos africanos, até aí e por regra assimilados e integrados nas tribos dominadoras, passou a ser bem diferente. Por todo o lado e sob todas as formas se procurou cativar indivíduos com o único fim de os vender aos europeus.
É incontestável, porém, que o tráfico escravista já existia em África; inclusivamente no comércio a longa distância era sustentado por uma vasta rede de intermediários árabes que, sobretudo após o século XI, tinham penetrado nas regiões ao sul do Saará e, entre outros produtos, canalizavam os escravos até ao Mediterrâneo. Rede comercial forte, cujo controlo permitiu a formação de grandes impérios sudaneses. Também da costa leste de África se registava um intenso tráfico para vários portos do Índico. Com a chegada dos portugueses deu-se a quebra do monopólio muçulmano e estabeleceu-se uma outra rota comercial voltada para o Atlântico.
Luís de Cadamosto e Duarte Pacheco Pereira testemunham não só a existência desse comércio orientado em diversas direcções, nos séculos XV e XVI, mas também transacções locais entre povos africanos, quer em feiras, quer através do «comércio mudo» ou «negócio do silêncio» quando as relações não eram amistosas, como no caso dos povos da região compreendida entre o rio dos Barbacins e o rio Gâmbia. Refere ainda o segundo autor que, a partir de S. Jorge da Mina, os portugueses mantiveram uma rede de distribuição de mão-de-obra aos próprios mineiros negros da floresta equatorial, que se serviam de escravos para a mineração do ouro e seu transporte até ao litoral.
Uma estrutura comercial deste tipo não se impunha de um momento para o outro. Se o resgate de escravos teve a aceitação das sociedades africanas foi porque o tráfico já era praticado nessas comunidades e, ao ser feito directamente com o europeu, oferecia vantagens económicas. Além do mais, permitia a aquisição de produtos até aí desconhecidos, que rapidamente passaram a fazer parte dos hábitos do africano, revestindo-se, por vezes, de significado político e social». In Maria do Rosário Pimentel, Chão de Sombras, Estudos sobre a Escravatura, Edições Colibri, 2010, ISBN 978-972-772-957-9.
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