2019
«(…) Eis como se deu a destruição
da Catedral de Kingsbridge em Os Pilares da Terra, do ponto de vista do prior Philip:
O estrondo de algo quebrando o fez levantar a
cabeça. Imediatamente acima dele, uma imensa viga emborcava lentamente. Ia cair
em cima de Philip. Ele correu de volta até o transepto sul, onde Cuthbert
estava parado com uma expressão assustada. Um pedaço inteiro do telhado, três
triângulos de vigas e empenas mais as placas de chumbo presas a eles, estava
desabando. Philip e Cuthbert ficaram olhando, petrificados, sem ligar para a própria
segurança. O telhado desabou por cima de um dos grandes arcos arredondados do
coro. O peso descomunal da madeira e do chumbo fez as pedras do arco racharem, provocando
uma explosão longa parecida com um trovão. Tudo aconteceu bem lentamente: as tábuas
caíram devagar, o arco rachou devagar e as pedras soltas despencaram no ar
devagar. Outras vigas do telhado se soltaram, e então, com um barulho
semelhante a um longo e lento rufar de trovão, uma parte inteira da parede
norte da chancela estremeceu e tombou para dentro do transepto norte. Philip
estava arrasado. A visão de um edifício daquela imponência sendo destruído era
estranhamente chocante. Era como ver uma montanha ruir ou um rio secar: ele
nunca chegara a pensar que aquilo pudesse acontecer. Mal podia acreditar nos próprios
olhos.
Em 15 de Abril de 2019, enquanto
a noite caía, a população de Paris foi para as ruas, e as emissoras de televisão
exibiram milhares de rostos enlutados iluminados pelas chamas, alguns entoando
hinos, outros apenas em lágrimas enquanto observavam sua amada catedral arder.
O tutie que provocou as reacções mais autênticas dos meus seguidores naquela
noite dizia: français, françaises, nous
partagons votre tristesse. Franceses, francesas, nós compartilhamos de sua
tristeza. O correcto seria
nous partageons, com e, mas ninguém se importou.
Há pessoas que entendem mais de
catedrais medievais do que eu, mas os jornalistas não sabiam o nome delas. Eles
sabiam o meu por causa dos meus livros, e sabiam que Os pilares da Terra é
sobre uma catedral, de modo que, em questão de minutos, comecei a receber
mensagens das redacções. Passei aquela noite inteira dando entrevistas para
canais de televisão, para rádios e jornais, explicando, em inglês e em francês,
o que estava acontecendo na Île de la Cité. Ao mesmo tempo que dava as
entrevistas, eu acompanhava a cobertura. O pináculo central, esguio como uma
ponta de flecha e com quase 100 metros de altura, era um provável ponto de
origem do incêndio, e agora ardia como o inferno. Era feito de 500 toneladas de
vigas de carvalho, com um tecto de chumbo de 250 toneladas, e a madeira em
chamas logo se tornou fraca demais para suportar todo o peso do metal. O momento
mais tocante da noite, para a multidão de luto nas ruas e para os milhões de espectadores
horrorizados diante da TV, foi quando o pináculo tombou para o lado, partiu-se
ao meio como se fosse um palito de fósforo e desabou sobre o telhado em chamas
da nave.
A
Notre-Dame sempre pareceu eterna, e os responsáveis por sua construção na Idade
Média sem dúvida acreditavam que ela duraria até ao Juízo Final. Mas, de
repente, vimos que ela poderia ser destruída. Na vida de toda criança existe o
momento doloroso em que ela percebe que o pai não é todo-poderoso nem infalível.
Ele tem fraquezas, está sujeito a doenças e um dia irá morrer. O desabamento do
pináculo me fez pensar nesse momento. Parecia que a nave já estava arruinada.
Acreditei ter visto chamas numa das duas torres e sabia que, se elas caíssem, a
igreja inteira seria destruída. O presidente Emmanuel Macron, um líder
modernizador radical que estava no meio de uma batalha amarga e violenta com a
parcela da população que não aprovava as suas reformas, se pronunciou diante
das câmeras e se tornou, pelo menos por algum tempo, o legítimo líder de uma nação
francesa unida. Ele impressionou o mundo e trouxe lágrimas aos olhos deste galês
quando disse, com firme convicção: Nous rebâtirons. Nós vamos reconstruir. Fui dormir à meia-noite e
ajustei o despertador para as quatro e meia, pois o último telefonema que tinha
recebido fora um convite para participar de um programa matinal no dia seguinte».
In
Ken Follett, Notre Dame, 2019, Editorial Presença, 2019, ISBN 978-972-236-453-9.
Cortesia de EPresença/JDACT
Ken Follett, Literatura, Paris, JDACT,