«(…) Em 1520, Hernán Cortés, ao penetrar na antiga capital mexicana de Tenochtitlán, foi tomado por um deus pelos astecas. Como jamais tinham visto armas de fogo ou cavalos, os astecas viram essas coisas não só como sobrenaturais mas como confirmação da condição divina de Cortés, de sua identidade como um avatar do seu deus supremo, Quetzalcóatl. Hoje, obviamente, podemos compreender como tal equívoco pôde acontecer. Até para um europeu ocidental da época, ele teria sido compreensível. É bastante claro que Cortés não tinha absolutamente nada de divino. No entanto, é igualmente claro que, nas mentes daqueles que acreditaram na sua divindade, ele era realmente um deus.
Suponhamos que
um índio mexicano moderno, talvez com vestígios de uma ascendência asteca,
afirme que acredita na
divindade de Cortés. Talvez isso nos pareça um tanto esquisito, mas não poderíamos
nos atrever a contestar a crença do índio, especialmente se sua origem social,
educação, criação, cultura, tudo isso tiver contribuído para fomentá-la. Ademais,
essa fé poderia envolver algo muito mais profundo do que a mera crença na divindade
de Cortés. O índio poderia afirmar que experimentava Cortés dentro de si, que
comungava pessoalmente com Cortés, que Cortés lhe aparecia em visões, que
através de Cortés ele se aproximava de uma unidade com Deus ou com o sagrado.
Como poderíamos cogitar de contestar afirmações como estas? O que um homem
experimenta na intimidade da sua psique deve necessariamente permanecer
inviolado e inviolável. E há muitas pessoas, perfeitamente lúcidas, perfeitamente
equilibradas, merecedoras de todo o respeito que, na privacidade da sua psique,
acreditam em coisas muito mais estranhas que a divindade de Cortés.
Mas o tempo em
que Cortés viveu, como o tempo em que Jesus viveu, está documentado. Sabemos um
bocado sobre o contexto histórico, o mundo em que esses personagens existiram.
Esse conhecimento não é uma questão de crença pessoal, mas de simples facto
histórico. E se um homem permite que sua crença pessoal distorça, altere ou
transforme o facto histórico, ele não pode esperar que outros, quer partilhem
ou não da sua crença, fechem os olhos para esse processo. O mesmo princípio se
aplica se um homem permite que sua fé pessoal desarrume consideravelmente as
leis da probabilidade ou o que sabemos sobre a natureza humana. Não poderíamos,
como dissemos, discutir com um homem que acredita na divindade de Cortés, ou
que, de alguma maneira, experimentou Cortés dentro de si. Poderíamos, no
entanto, discutir com um homem que afirmasse que Cortés, mesmo sem a sua
armadura, era imune a lanças e flechas, que atravessou a cavalo os céus ou os
mares, ou que usava armas que sabemos só terem sido inventadas dois séculos
depois.
Não é que os
registros estabelecidos sobre Cortés neguem explicitamente essas coisas. Eles
não o fazem, pela simples razão de que nada disso foi afirmado a propósito de
Cortés enquanto ele estava vivo. Mas essas afirmações contrariam de maneira tão
flagrante a história conhecida, a experiência humana e a simples probabilidade,
que é extremamente difícil acreditar nelas. Corno crença pessoal, podem ser
inatacáveis. Apresentadas como facto histórico, porém, repousam numa base
demasiado improvável e tênue.
Jesus suscita um
problema essencialmente análogo. Não temos nenhum desejo de contestar a fé
pessoal, a crença pessoal de ninguém. Não estamos tratando do Cristo ou Christus da teologia, a figura
que goza de urna existência muito real e muito vigorosa nas psiques e
consciências dos que têm fé. Estamos tratando de um outro personagem, alguém
que realmente caminhou pelas areias da Palestina 2 mil anos atrás, assim como
Cortés pisou as pedras do deserto mexicano em 1519. Estamos tratando, em suma,
do Jesus da história, e a história, por mais vaga e incerta que por vezes possa
ser, está sempre pondo em xeque nossos desejos, nossos mitos, nossas imagens
mentais, nossas ideias preconcebidas». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry
Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN
978-852-008-568-5.
JDACT, Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, Literatura, Religião, Crónica,