sábado, 29 de abril de 2023

Viagem a Portugal. José Saramago. «O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos…»

jdact e cortesia de wikipedia

Os Animais Apaixonados

«(…) Estas coisas merecem a sua coroação. Lá adiante há outro vale, um enorme circo rodeado de montanhas, cultivado, fundo, largo. E logo depois, quando o solo volta a ser bravo, de pinheiral e mato, aparece o arco-íris, o arco do céu, aqui tão perto que o viajante cuida que lhe pode chegar com a mão. Nasce em cima da copa dum pinheiro, vai por aí acima e esconde-se por trás da encosta, e em verdade não é um arco, mas sim um quase invisível segmento de círculo franjado de faixas coloridas, assim como uma cortina de tule finíssimo em frente de um rosto. O viajante cansa-se de comparações e faz uma última e definitiva, junta todos os arco-íris da sua vida, verifica que este é o mais perfeito e completo de todos, agradece à chuva e ao Sol, à sua preciosa sorte que o trouxe aqui nesta preciosa hora, e segue viagem. Quando passa debaixo do arco-íris, vê que lhe caem sobre os ombros tintas de várias cores, mas não se importa, felizmente são tintas que não se apagam e ficam como tatuagens vivas.

O viajante está quase a chegar a Cabeceiras de Basto, mas antes fez um desvio para Alvite, só para a ver, da banda de fora, a Casa da Torre, conjunto de porta, capela e torre, barrocas as primeiras, a torre mais antiga, e o mais singular daqui são os altos pináculos das esquinas, equilíbrio magnífico de formas volumétricas, airosa graça de funambulismo arquitectónico. Em Cabeceiras, o viajante é recebido pelas primeiras gotas do que há de vir a ser, não tarda, uma devastadora bátega. Vai ao convento, que é uma enorme construção setecentista onde já nada se encontra do primitivo mosteiro beneditino. Esta região está bem guardada por S. Miguel. Aqui são logo dois, um sobre o pórtico, e outro, de tamanho maior que o natural, vê-se cá de baixo empoleirado no lanternim do zimbório, mirando toda a paisagem, à procura de almas perdidas. S. Miguel deve ter ganho todas as suas batalhas, ou não estariam os demónios, de língua de fora, pategos e humilhados, suportando os órgãos da igreja, como atlas de plástica monstruosa, sem nenhuma grandeza.

Volta o viajante à praça, de repente lembrado de que não vira o Basto, delito que tão pouco se perdoa como não ver o papa em Roma, estando lá. Habituado a praças de monumento ao meio, o viajante concluiu que o Basto foi roubado, ou não é ali a sua Roma. Foi por isso informar-se, e afinal eram só dois passos, a deslado, entre o chafariz e o rio. O Basto, quem é? Dizem que se trata de um guerreiro galaico, de escudo circular na barriga, como era moda do tempo. Data, tem a de 1612, e mais parece um rapazito de bigodes pintados e calções curtos do que o rústico batalhador de antigas eras. Tem na cabeça uma barretina das invasões francesas, e para não falhar a primeira comparação parece usar umas meias bem puxadinhas por mandado de sua mãe ou avó. Dá vontade de sorrir. O viajante tira-lhe o retrato, e ele apruma-se, olha para a objectiva, quer ficar favorecido, o Basto, com o seu fundo de ramos verdes, como convém a senhor de terras e montanhas, muito mais que o S. Miguel do lanternim, tão distante. O Basto é, por força, uma das mais justificadas estátuas portuguesas, todos lhe querem bem.

O viajante olha o céu, desconfiado. Estão a amontoar-se umas nuvens escuríssimas, netas reforçadas das que fizeram o dilúvio. Pensa no que fará, se fica por ali a beber um cafezinho quente ou se se mete ao caminho, traz na ideia ir à aldeia de Abadim, que fica perto. Como o viajante anda à descoberta do que não sabe, tem de correr seus riscos. Vai portanto a Abadim, e é como se passasse o Rubicão. Não tinha andado um quilómetro desaba uma catarata do céu. Em poucos segundos o espaço ficou branco do contínuo fluxo de água. Uma árvore a vinte metros ficava tão vaga, tão difusa como se estivesse escondida no nevoeiro. Para a estrada, péssima, corriam as cascatas dos montes.

Aí, o viajante temeu. Já se via arrastado pela corrente, de cambulhada com as pedras soltas e as folhas mortas. Atravessou uma pontezinha frágil, e agora vai mais sereno, sobe o monte, o automóvel não dá parte de fraco, e depois de mil voltas aí está Abadim. Não se vê vivalma, toda a gente recolhida, em casa a que em casa está, em abrigos de ocasião os que andam fora. A chuva diminuiu, mas ainda cai com grande violência. O viajante resolve retirar-se, continuar viagem, mais frustrado do que quer confessar. É então que passa uma mulher nova, de guarda-chuva aberto, e o viajante aproveita: Boas tardes. Pode dar-me uma informação? Aqui os gados dos vizinhos ainda vão todos juntos para a serra da Cabreira, ou já não se usa? A mulher há-de estar a perguntar a si própria por que quer o viajante saber tais coisas, mas é simpática, e delicada, se lhe perguntam, responde: É, sim senhor. Do primeiro domingo de Junho até ao dia da Assunção, vai o gado todo para a serra, com os pastores. Ao viajante custam a entender estas transumâncias, mas a mulher explica que na serra da Cabreira há uma pastagem que é de Abadim, sua propriedade mesma, e é para aí que o gado vai aposentar. O viajante lembra-se de Rio de Onor, terras da banda de lá que são nossas, terras da banda de cá que são deles, e mais se lhe enraíza a convicção de quanto é relativo o conceito de propriedade, querendo os homens. Despede-se da mulher, que deseja boa viagem, e quando já vai na estrada, chove quase nada, encontra um pastorzito de quinze anos. Quem é, quem não é: Ando a guardar vacas do meu pai e de uns vizinhos». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 

Cortesia de PEditora/JDACT

 

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,