A Cava do Lobo Manso
«(…)
Quando o viajante acordou, ainda mal
aclarava, percebeu que não fora só o marulhar da corrente do rio que o
embalara. Chovia, as goteiras despejavam cataratas sobre os ladrilhos da
varanda. Acostumado já a viajar com todo o tempo, encolheu o viajante os ombros
debaixo dos cobertores e tornou a adormecer, sem cuidados. Foi o bem que fez.
Ao levantar-se, já manhã franca, o céu está descoberto, o Sol anda a fazer
arco-íris pequeninos nas gotas penduradas das folhas. É uma festa. O viajante
arrepia-se só de pensar no calor que já estaria se fosse Verão. A primeira ida
é ao Museu Albano Sardoeira, onde há algumas peças arqueológicas de interesse,
umas tábuas quinhentistas que merecem atenção, mas, acima disso e do resto,
estão os Amadeus, soberbas telas do período de 1909 a 1918, com um saber de
oficina que as mostra no esplendor da última pincelada, como se o pintor,
acabada a obra, tivesse saído agora mesmo para a sua casa de Manhufe onde a vindima o estava esperando. Tem mais o museu uns
Elóis, uns Dacostas, uns Cargaleiros, mas é o Amadeo de Souza-Cardoso que o
viajante devagar contempla, aquela prodigiosa matéria, suculenta pintura que se
desforra do exotismo orientalista e medievalizante dos desenhos que, em
reprodução reduzida, o viajante veio a comprar, humildemente.
Está visto que a paciência é uma grande virtude. Diga-o S.
Gonçalo que no século XIII construiu a ponte antes desta e teve de esperar
cinco séculos para lhe arranjarem lugar para um túmulo em que não está, mas
onde não faltam as oferendas. O viajante diz isto com ares de gracejo, maneira
conhecida de compensar o susto que apanhou quando, ao entrar numa capela de
tecto baixíssimo, deu com a grande estátua deitada, colorida como de pessoa
viva. Estava o local meio às escuras e o susto foi de estalo. Estão polidos os
pés do milagroso santo, de afagos que lhe fazem e de beijos que neles depõem as
bocas que vêm implorar mercês. É de acreditar que os pedidos sejam satisfeitos,
pois não faltam as oferendas, pernas, braços e cabeças de cera, equilibrados
sobre o túmulo, é certo que ocos, os tempos vão maus para a cera maciça, e esta
bem se vê que é adulterada. Salva-se a fé que é muita neste S. Gonçalo de
Amarante que tem reputação de casar as velhas com a mesma facilidade com que
Santo António, por condão das raparigas, passou à história.
O viajante percorre a igreja e o claustro do que foi o convento, e, em seu coração, põe-se a amar
Amarante, sabendo já que é um amor para sempre. Nem o afligem os três maus reis
portugueses que na varanda estão, e o outro, espanhol, pior que todos: o dom João
III, o dom Sebastião e o dom Henrique cardeal, mais o primeiro dos Filipes.
Amarante é tão graciosa cidade que se lhe perdoa o perverso gosto histórico. Enfim,
estão lá estes reis porque foi durante os reinados deles que a construção se
fez. Razão suficiente.
Torna o viajante à igreja mete por uma passagem lateral que
vai dar à sacristia. Donde vem esta música rock and roll, é que não adivinha.
Talvez da praça, talvez um vizinho amador. Em cidades de província, o menor
ruído chega a toda a parte. O viajante dá mais dois passos e espreita. Sentado
a uma secretária, um homem, escriturário ou sacristão, isso não veio a
saber-se, faz lançamentos num grande livro e tem ao lado um pequeno transístor
que é o responsável pela música, ali, enchendo a sacristia venerável de sons
maliciosos e convulsivos. Já nada surpreende o viajante, porém quer averiguar
por completo até onde vai a subversão, e então pergunta: Dá licença que passe
uma vista de olhos? O sacristão levanta a cabeça, olha afavelmente e responde:
Ora essa. Veja à vontade. E enquanto o viajante dá a volta à sacristia, examina
os tectos pintados, as imagens de boa nota artística, um S. Gonçalo patusco e bem-disposto,
vai o transístor chegando ao fim do rock e começa outro, até parece invenção, mas não é, são verdades inteiras,
nem aparadas, nem acrescentadas. Agradece o viajante, o sacristão continua a
escrever, ninguém lhes perguntou, mas ambos estão de acordo em que está um
lindo dia, e a música toca. Talvez daqui a bocado dêem uma valsa». In
José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão
2022, ISBN 978-972-003-473-1.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,