NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.
Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126
«(… ) No segundo cavalo, ia
montado um homem que tinha um rabo muito gordo, que caía para cima da garupa do
animal, e à sua frente seguia outro que estava sempre a coçar a cabeça. Por
fim, na garupa do terceiro cavalo, encontrava-se um indivíduo de cara disforme,
com enormes elevações nas bochechas, cuja cor era avermelhada. Metia impressão
olhar para ele e por isso Ramiro evitou fazê-lo, nem reparando bem no seu
companheiro da frente, que guiava o animal.
Ninguém falou até que Gondomar
deu ordem de paragem, já o céu estava alaranjado pelo nascer do Sol.
Encontravam-se no meio de uma floresta e ouviam-se os pássaros lançando os seus
agitados piares matinais. À beira da estrada havia uma clareira, e Gondomar
disse-lhes que desmontassem ali, mandou-os colocar em círculo e depois ajoelhou
e rezou uma oração em latim. Ramiro reparou que o velho cavaleiro tinha os
olhos avermelhados, parecia estar sempre a chorar. No final da reza, ouviu-o
dizer: Comamos. O mestre foi junto do seu cavalo, trouxe um saco com pães e
distribuiu-os. Comeram em silêncio e, depois de terminarem, Gondomar tomou a
palavra. Na nossa Ordem, não interessa o passado, mas sim o futuro. Olhando
para Ramiro, prosseguiu: Temos um novo membro. Vai seguir connosco para Soure.
Entre nós não há bastardos nem infanções, nem ricos-homens nem cavaleiros-vilões.
Sereis igual a todos e a cada um, um monge guerreiro.
Ramiro reparou que nenhum dos
presentes parecia lavrador ou artífice. Deviam ser gente da floresta, antigos
soldados ou servos, malados ou mesmo salteadores. Gondomar continuou: – O nosso
novo companheiro chama-se Ramiro, e é por esse nome que o devem tratar, a não
ser que ele deseje outro. Ramiro negou, abanando a cabeça. Então, Gondomar
afastou-se um pouco, desaparecendo atrás de uma árvore. Os restantes homens
cercaram o novo recruta e começaram a apresentar-se. O mais baixinho do grupo
disse que o tratavam por Rato, pois era pequeno e conseguia enfiar-se nos
locais mais difíceis. Ramiro viu um punhal, com uma pérola no seu topo, enfiado
no cinto do homem, e estremeceu. Era o punhal do seu pai! O mesmo que ele na sexta-feira
quase usara para se matar, e que desaparecera no sábado! O pai perguntara pela
arma, mas Ramiro lembrava-se de o ter deixado em casa, em cima de uma mesa, e
vira-o no cinto de Paio Soares, sábado à tarde, durante o jantar.
De repente, reconheceu o homem:
era o criado que chocara com o pai à entrada da tenda! Decerto fora nesse
momento que roubara o punhal, aproveitando o descontrolo do seu progenitor. O
Rato era um ladrão, fugira de Coimbra para evitar ser descoberto, mas Ramiro
nada disse e deixou o homem seguinte apresentar-se. Era o maior e mais forte de
todos, afirmou que lhe chamavam Urso, por ser assim, e os outros riram-se,
divertidos. De mim ninguém se ri, disse o homem da cara disforme. Aproximou-se
de Ramiro, ficando com o rosto em frente ao dele, para que o rapaz olhasse para
as suas horríveis feições, e resmungou: – Se tendes medo do que vedes, é melhor
regressardes a Coimbra, pois irei para a cova assim, não vou sarar.
O Rato disse que o grotesco se
chamava Ameixa, e que nem as mulheres da rua o queriam, pois desmaiavam se ele
se aproximasse, e os outros riram novamente. Então, o Ameixa apontou para o que
viera com ele no cavalo e avisou: Não vos chegueis ao Santinho, tem piolhos. O
que coçava muito a cabeça voltou a fazê-lo e riu-se. O Rato juntou-se ao gordo,
cujo rabo era enorme, e deu-lhe uma palmada nas costas. Este adora as
soldadeiras, mas elas chamam-lhe Peida Gorda. E nós gostámos do nome! Peida
Gorda, Peida Gorda, passa o dia a comer açorda!, trauteou». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras,
LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,