domingo, 2 de abril de 2023

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «O Rato disse que o grotesco se chamava Ameixa, e que nem as mulheres da rua o queriam, pois desmaiavam se ele se aproximasse, e os outros riram novamente»

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NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

Viseu, Domingo de Páscoa, Abril de 1126

«(… ) No segundo cavalo, ia montado um homem que tinha um rabo muito gordo, que caía para cima da garupa do animal, e à sua frente seguia outro que estava sempre a coçar a cabeça. Por fim, na garupa do terceiro cavalo, encontrava-se um indivíduo de cara disforme, com enormes elevações nas bochechas, cuja cor era avermelhada. Metia impressão olhar para ele e por isso Ramiro evitou fazê-lo, nem reparando bem no seu companheiro da frente, que guiava o animal.

Ninguém falou até que Gondomar deu ordem de paragem, já o céu estava alaranjado pelo nascer do Sol. Encontravam-se no meio de uma floresta e ouviam-se os pássaros lançando os seus agitados piares matinais. À beira da estrada havia uma clareira, e Gondomar disse-lhes que desmontassem ali, mandou-os colocar em círculo e depois ajoelhou e rezou uma oração em latim. Ramiro reparou que o velho cavaleiro tinha os olhos avermelhados, parecia estar sempre a chorar. No final da reza, ouviu-o dizer: Comamos. O mestre foi junto do seu cavalo, trouxe um saco com pães e distribuiu-os. Comeram em silêncio e, depois de terminarem, Gondomar tomou a palavra. Na nossa Ordem, não interessa o passado, mas sim o futuro. Olhando para Ramiro, prosseguiu: Temos um novo membro. Vai seguir connosco para Soure. Entre nós não há bastardos nem infanções, nem ricos-homens nem cavaleiros-vilões. Sereis igual a todos e a cada um, um monge guerreiro.

Ramiro reparou que nenhum dos presentes parecia lavrador ou artífice. Deviam ser gente da floresta, antigos soldados ou servos, malados ou mesmo salteadores. Gondomar continuou: – O nosso novo companheiro chama-se Ramiro, e é por esse nome que o devem tratar, a não ser que ele deseje outro. Ramiro negou, abanando a cabeça. Então, Gondomar afastou-se um pouco, desaparecendo atrás de uma árvore. Os restantes homens cercaram o novo recruta e começaram a apresentar-se. O mais baixinho do grupo disse que o tratavam por Rato, pois era pequeno e conseguia enfiar-se nos locais mais difíceis. Ramiro viu um punhal, com uma pérola no seu topo, enfiado no cinto do homem, e estremeceu. Era o punhal do seu pai! O mesmo que ele na sexta-feira quase usara para se matar, e que desaparecera no sábado! O pai perguntara pela arma, mas Ramiro lembrava-se de o ter deixado em casa, em cima de uma mesa, e vira-o no cinto de Paio Soares, sábado à tarde, durante o jantar.

De repente, reconheceu o homem: era o criado que chocara com o pai à entrada da tenda! Decerto fora nesse momento que roubara o punhal, aproveitando o descontrolo do seu progenitor. O Rato era um ladrão, fugira de Coimbra para evitar ser descoberto, mas Ramiro nada disse e deixou o homem seguinte apresentar-se. Era o maior e mais forte de todos, afirmou que lhe chamavam Urso, por ser assim, e os outros riram-se, divertidos. De mim ninguém se ri, disse o homem da cara disforme. Aproximou-se de Ramiro, ficando com o rosto em frente ao dele, para que o rapaz olhasse para as suas horríveis feições, e resmungou: – Se tendes medo do que vedes, é melhor regressardes a Coimbra, pois irei para a cova assim, não vou sarar.

O Rato disse que o grotesco se chamava Ameixa, e que nem as mulheres da rua o queriam, pois desmaiavam se ele se aproximasse, e os outros riram novamente. Então, o Ameixa apontou para o que viera com ele no cavalo e avisou: Não vos chegueis ao Santinho, tem piolhos. O que coçava muito a cabeça voltou a fazê-lo e riu-se. O Rato juntou-se ao gordo, cujo rabo era enorme, e deu-lhe uma palmada nas costas. Este adora as soldadeiras, mas elas chamam-lhe Peida Gorda. E nós gostámos do nome! Peida Gorda, Peida Gorda, passa o dia a comer açorda!, trauteou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

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