«(…) No românico, o homem fica na escuridão e Deus desce até ele. No gótico, é o homem que se eleva até à presença de Deus, através da luz que inunda o ambiente. O que será que poderia estar por trás dessa pregação?, pensou Maurício, olhando no alto do morro o pequeno vilarejo de Obanos.
Obanos
foi palco de um dos mais tristes episódios da história do Caminho. Por
coincidência, naquele dia, o vilarejo fazia uma representação teatral do
misterioso drama dos irmãos Felícia e Guilherme, filhos do duque de Aquitânia. Eis
aí outro mistério inacessível do passado, voltou o inspector, com suas
infelizes explicações. A Igreja transformou assassinos em santos e deu a reis
poderes para governar os céus, canonizando muitos deles. O assassinato de Felícia
pelo seu irmão é outra curiosidade. Se ele fosse um plebeu, seria enforcado,
mas Guilherme era o poderoso duque de Aquitânia e, então, virou santo.
Depois
de peregrinar a Santiago, Felícia abdicou das riquezas, preferindo ficar em
Obanos para se dedicar aos pobres e aos peregrinos. Seu irmão Guilherme tentou
convencê-la a voltar para se ocupar do palácio, mas diante da resistência da
irmã ficou tão indignado, que a degolou, num gesto impensado do qual se
arrependeu. Cheio de remorsos, fez a peregrinação e mandou construir a Ermida
de Arnotegui, perto de Obanos, conhecida como Ermida de São Guilherme. Felícia
foi santificada e seu túmulo fica na cidade de Labiano, nas imediações de
Pamplona. Guilherme passou o resto dos seus dias acudindo peregrinos e ajudando
os pobres.
Chegaram
ao centro da cidade onde dois enormes bonecos na frente da igreja simbolizavam
Felícia e Guilherme. Entraram num bar, tomaram água e café e descansaram um
pouco para continuar até a ermida de Nossa Senhora de Eunate. Quem vem de
Roncesvalles, precisa andar mais uns três quilómetros até esse misterioso
templo cuja visita é obrigatória.
O
Caminho tem dois pontos de origem. Um deles é a cidade de Saint-Jean-Pied-de-Port,
onde começa o chamado Caminho francês, que passa por Roncesvalles; o outro é o
alto de Somport, de onde sai o Caminho aragonês, assim chamado por causa do rio
Aragão. Em Puente la Reina, os dois se encontram e o Caminho continua num único
trajecto. Na peregrinação anterior, Maurício tinha tomado um táxi em Puente la
Reina para voltar a Somport e fazer também esse trajecto a pé, mas agora não
estava disposto a tanto.
Já
eram duas horas daquela tarde de sol inclemente e sentia-se reconfortado por
estar equipado de óculos escuros, mangas compridas e filtro solar nas partes
expostas, apesar de as plantas dos pés arderem sobre o solo quente.
A
igreja de Eunate, que em euskera significa
cem portas, dá aos adeptos do esoterismo razões para longos estudos. Sua
arquitectura evoca mistérios do Além. Vestígios de construções anteriores
mostram sucessivos elementos octogonais em volta de um ponto central e teria
sido construída inicialmente como túmulo para uma misteriosa rainha que ninguém
sabe de onde viera.
Sua
estrutura é similar à do Santo Sepulcro, com o quadrado indicando a ordem
terrestre e o círculo simbolizando a vida eterna, e por isso chamou a atenção
dos iniciados em ciências secretas. Era impossível ver aquela construção e não
se lembrar dos Cavaleiros Templários e sua lendária existência. O senhor está
vendo aquela figura esquisita? Aquele é o bafomet. Figuras de
seres estranhos rodeavam o beiral, e o inspector apontava para uma delas.
Veja
o senhor que injustiça o papa fez com os templários. Eles foram os criadores do
gótico a partir dos estudos que fizeram do Templo de Salomão e introduziram
essas gárgulas como canaletas para escoamento de água. Para acusá-los,
inventaram que o bafomet
era o Diabo e que os templários o adoravam.
Maurício
procurava ser cortês e o inspector entendia essa cortesia como uma demonstração
de interesse. Ele dava voltas para chegar ao assunto principal, como se
quisesse pegar o interlocutor de surpresa, e trouxe do fundo dos séculos um dos
temas mais delicados da história do catolicismo. A Igreja não poupava os
inocentes, quando eles ameaçavam o seu poder. Veja o que aconteceu com os
cátaros. Eles eram considerados hereges apenas porque praticavam um
cristianismo puro e por isso o papa lançou contra eles uma Cruzada, a chamada Cruzada
Albigense. Sabe qual era o crime dos
cátaros? Eles viviam bem no centro da peregrinação, em torno da cidade de Albi.
Acabaram
de dar a volta da igreja e estavam diante da entrada principal, admirando a
simetria da construção. O senhor vai passar por Estella. Não deixe de notar o
erotismo disfarçado que brota da cena em que o Sagitário aponta sua flecha para
o umbigo de uma sereia, na igreja de São Pedro de la Rua. Bafomet,
umbigo de sereia, cátaros! O que estaria por trás dessas observações
extemporâneas?, pensava Maurício, mas nesse momento uma senhora chegou
correndo, assustada. Ela estacionara o carro para visitar a igreja e, quando
voltou, o vidro à direita do motorista estava aberto e uma bolsa que tinha
deixado no banco da frente desaparecera. O inspector se identificou e foram até
ao veículo.
Olhem
que coisa mais esquisita! Levaram a minha bolsa e deixaram isso aí. Parece
coisa de feitiçaria. A porta estava semi-aberta e o inspector examinou o carro,
não dando muita importância às reclamações da mulher, que se lamentava por ter
ficado sem documentos e dinheiro. Em seguida, ligou pelo telemóvel para o posto
policial mais próximo, o de Puente la Reina.
Maurício
tinha ficado afastado porque era assunto para o inspector, mas a mulher abriu
toda a porta para revistar melhor o carro, na esperança de encontrar a bolsa, e
ele pôde ver os objectos que estavam no banco dianteiro do motorista». In AJ Barros, O Enigma de Compostela,
Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
Cortesia de GEditorial/JDACT
JDACT, Santiago de Compostela, Cultura, AJ Barros, Literatura,