sábado, 22 de abril de 2023

O Enigma de Compostela. AJ Barros. «Felizmente, o mundo não acabou com o fim do milénio, mas o poder religioso se consolidara, e igrejas e monumentos continuaram sendo construídos em toda a Europa como prova de devoção…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Ao descerem o Monte dei Perdon, o detective fez um comentário enigmático. O Caminho é uma homenagem à morte e ao sofrimento. O senhor já fez o Caminho? É o lugar predilecto das minhas férias. Já fiz o trajecto de Roncesvalles a Santiago onze vezes. Onze vezes!, exclamou Maurício, impressionado. Sim. Onze vezes. Mas não foi só a passeio. Minha mulher é professora de arquitectura e defendeu tese de mestrado sobre a influência muçulmana na construção das igrejas do Caminho. A primeira vez que fiz o Caminho tinha dezoito anos. Éramos um grupo de universitários fazendo pesquisas para trabalho escolar. Naquela época o percurso era mal sinalizado e havia menos peregrinos.

Apoiando-se no cajado para não escorregar no terreno pedregoso da descida, trocavam opiniões sobre a influência que a simples descoberta de um túmulo teve sobre a humanidade. Calcula-se que durante o período que vai do século X ao XIV aproximadamente quinhentos mil pessoas desciam anualmente de todos os cantos da Europa para visitar as relíquias de São Tiago.

Minha mulher diz que o Caminho foi um fenómeno histórico e histérico ao mesmo tempo. Ainda hoje, para quem o faz, o Caminho é uma coisa inexplicável e inesquecível. Dois conceitos interessantes. Gostei. O albergue! O albergue criou o Caminho, marcou o seu trajecto e recebia os peregrinos que passaram a ter onde repousar e se recuperar para enfrentar a jornada seguinte. É bem possível que tenha razão. Deve-se ao albergue a definição do Caminho.

Uma das coisas que mais me impressionam é a importância do Caminho para o progresso da humanidade. Progresso da humanidade?, os pensamentos de Maurício se afastavam para outro raciocínio e a pergunta não saiu com naturalidade.

Mas é claro! Enquanto os cristãos viviam obcecados pelo medo do inferno, os árabes avançaram nos estudos da matemática, da física, da arquitectura, filosofia, literatura, medicina e astronomia. Quando invadiram a Península Ibérica, em 711, textos de Sócrates, Platão, Aristóteles, Ptolomeu, Hipócrates, Galeno e grandes médicos árabes, como Avicena e Ali Abbas, escritos em árabe e hebreu, vieram para a Espanha. Com a reconquista da cidade de Toledo em 1085, esses textos chamaram a atenção de cristãos e judeus. O bispo da época criou um grupo de tradutores que ficou conhecido como Escola de Tradutores de Toledo.

Como um arauto de toda a sabedoria da Idade Média, ele parou e virou-se para Maurício: Entendeu agora? Ao chegarem à Península Ibérica os peregrinos entravam em contacto com essas traduções e as levavam de volta para Paris, Roma, Amsterdão e outros centros europeus. A cultura clássica havia desaparecido e o Caminho a ressuscitou.

De facto, a Escola de Tradutores provocou uma revolução cultural no continente. Um peregrino levava na mochila uma tradução de Sócrates, outro, de Platão, e assim a Europa recompôs a cultura clássica. Sob esse aspecto, é inegável o mérito da peregrinação. Não podemos esquecer que o cristianismo deteve o progresso da humanidade por mais de mil anos e, se não fosse o Caminho, esse atraso seria maior.

A queda do Império Romano deixara a Europa sem lei e sem ordem. Não havia mais uma força organizada para proteger a ordem pública, e o comércio e a vida urbana enfraqueceram. Consequentemente, escolas e actividades culturais também diminuíram e o que restou girava em torno do cristianismo. Havia a crença de que o mundo desapareceria no fim do primeiro milénio e, então, reis e nobres começaram a construir igrejas, para serem enterrados dentro delas. Acreditavam que, assim, ficavam mais perto de Deus.

Felizmente, o mundo não acabou com o fim do milénio, mas o poder religioso se consolidara, e igrejas e monumentos continuaram sendo construídos em toda a Europa como prova de devoção, levando catedrais e mosteiros a concorrer em grandiosidade para atrair peregrinos e doações.

Até então, as igrejas eram construções menores e os grandes templos foram um desafio novo que levou os construtores a buscarem inspiração nos edifícios de Roma, dando origem ao estilo que passou a chamar-se românico.

Não se aborreça com minhas explicações, pois elas são importantes para se entender o Caminho. A quantidade de monumentos românicos forma uma rica esteira de arte. O estilo românico se aperfeiçoou e surgiu o arco de tensão, em que uma pedra se apoia noutra, possibilitando maior abertura dos vãos e dando origem ao estilo gótico, que permitiu naves mais altas e janelas maiores com vitrais coloridos, trazendo a luminosidade para dentro das igrejas.

Maurício tinha por hábito tentar descobrir o que de mais sério poderia existir dentro de uma conversa simples. Inquietava-o que um policial graduado, envolvido numa investigação de crimes misteriosos, perdesse tempo em tantas divagações. Não simpatizava com aquele homem, não o conhecia e estranhava o diálogo.

Aliás, os dois estilos mostram maneiras diferentes de se ver Deus. Sim, é verdade! No românico, o interior das igrejas tem pouca luz, para que a pessoa medite e sinta a plena força da divindade. Já o gótico é alegre, nele as janelas são maiores, e a claridade mostra o ser humano como parte da divindade». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.

Cortesia de GEditorial/JDACT

 

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